Ela sonhou comigo

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São duas da manhã e ainda tô perplexo. É uma sensação que não dá pra explicar. Tipo, vou tentar continuar a contar sobre meu dia, mas aconteceu tanta coisa, mas muita mesmo, e tudo conectado, tanto detalhe que nem sei se vai caber aqui, ou se vou aguentar contar tudo, porque acho que vou acabar tremendo tanto que não vou conseguir terminar. Mas vamos lá, isso precisa ser dito.

Lá estava eu, ainda pensando na noite passada, toda aquela experiência que, mesmo não sendo visível, tenho certeza do que senti, era real. Tava na escola, aula de matemática, a professora gatona não me chamava tanto atenção quanto meus pensamentos. Era replay a cada 5 minutos sobre tudo que eu passei até aquele momento. Aí ela entrou na sala, esbaforida, toda molhada. Natália estava ali, descabelada, pedindo pra entrar na sala trinta minutos atrasada. A professora nem ligou, continuou aproveitando a atenção dos meus colegas que não tiravam o olho do seu traseiro.

Eu continuei esparramado na cadeira, esperando ela vir falar comigo, mas não veio. Então eu fui, na boa, sentei ao lado e já fui perguntando por onde ela andava, só que em vão. Ou eu virei alma penada ou ela não queria falar comigo mesmo. Comecei a cutucar, até que ela virou, irritada, e gritou pra eu parar de encher o saco. Fiquei parado por um tempo, pra ver se ela ia se tocar e pedir desculpas por fazer a turma interromper a atenção na aula e rir da minha cara. Mas nada aconteceu da parte dela. Não devia estar bem, concluí.

Voltei tranquilo pra minha mesa e fiquei olhando pra ela, tipo, de vez em quando, pra disfarçar, tentando entender, perceber algo a mais que estivesse diferente. No intervalo conseguimos conversar, Natalia realmente não estava bem, estava se recuperando do hospital. E eu nem sabia de nada! Falei com ela pra me contar as coisas, pra eu poder visitar, orar, dar força. Ela riu quando eu disse "orar". Repetiu a frase duas vezes, como se estivesse saboreando um doce. Mexia as mãos como se estivesse atuando.

- Desde quando você fala assim?- perguntou.

- Sei lá - respondi - acho que desde que você me levou pra essa piração sua.

Fiquei empolgado com o interesse dela, e contei sobre a experiência da noite anterior. Ela explodiu de alegria, disse que nunca imaginou ouvir essas coisas de mim algum dia, era como um sonho.

Foi então que ela me contou.

Contou que quando estava pra se mudar pra minha rua, teve um sonho de verdade comigo, e isso antes de me conhecer! Disse que ouvia meu nome, via meus pais, e Deus dizia a ela que tinha um propósito na mudança dela pra cá. Eu fiquei mais chocado.

- Como você nunca me disse isso?

- Não queria te assustar - disse ela, levantando da mureta ao som do sinal. - Vamos, depois a gente conversa mais! Tenho mais coisa pra contar!

...

Depois da escola, fomos empurrando as bikes pela rua, e eu insistindo pra ela terminar a história. Eu nunca fui do tipo brincalhão, muito menos com garotas. Eu sou do tipo que implica pra valer e anda sozinho, de cara feia (não que eu seja bonito em algum momento). A Natalia me conheceu assim, e conseguiu me fazer soltar um pouco as palavras e rir de coisas bobas. Eu estava adorando aquilo tudo.

- Realmente você não tem ideia do quanto Deus ama você. Ele me tirou lá de Porto Alegre só pra te salvar. Tem noção?

Eu não tinha noção de nada vezes nada.

- Deus faz umas coisas malucas. - foi o que eu consegui responder, sorrindo.

- Bom, eu sei disso até demais... - ela ficou pensativa.

Paramos numa praça próximo a casa dela e tomamos um copão de açaí, cada um. Estava calor, então fomos para o campo de areia no meio da praça e sentamos na arquibancada coberta.

- Eu tinha cinco anos quando meu pai morreu num acidente de carro. Eu não me lembro muito bem dele. Minha mãe teve que arrumar mais um emprego e deixava meu irmão e eu com meus avós o tempo inteiro. - ela suspirou - Meus avós são bem de vida, e queriam que minha mãe morasse com eles, mas ela nunca aceitou esmolas, queria subir na vida com as próprias pernas. Um dia, ela começou a namorar um cara da empresa, eles noivaram e se casaram. Ele era da igreja e levou s gente com ele. Com doze anos eu me revoltei e comecei a sair com um garoto de dezesseis anos que fumava maconha na escola. Ele era marrento e dizia que me amava, essas coisas. - O olhar dela ficou vazio - ele me tirou de casa por seis meses.

- Com doze anos? Você era uma criança! Como sua mãe pode deixar?

- Ela não deixou. Eu fugi pra outra cidade. Foi horrível. Ela me encontrou depois de muita investigação e me levou de volta pra casa. Meus avós pararam de falar comigo. Mas minha mãe, meu irmão e meu padrasto me acolheram com tanto amor que eu quase fugi de novo.

- Por que?

- Porque eu não merecia. Eu era burra e egoísta, magoei todo mundo que gostava de mim. Traí o Senhor. Todas as noites eu chorava arrependida.

- E como você saiu dessa?

- Um ano depois, eu tinha quase catorze anos, e ouvi um louvor que falava "...nem o pecado, nada vai me separar do Teu amor...". Eu finalmente entendi que não importa o que eu fizesse, o amor de Deus não diminui. O amor que Leonardo me deu era falso, com espinhos e quase me matou. Mas o amor de Deus me oferecia vida, alegria, força. Eu estava sendo atraída como um ímã. Resolvi me entregar, deixar esse amor entrar e criar raízes. - ela se virou e pôs a mão no meu ombro, sorrindo. - Foi aí, meu amigo, que eu pirei de vez.

O dia em que eu pireiOnde histórias criam vida. Descubra agora