O garoto ao lado

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Deus.

Como isso pôde acontecer comigo?

Deus!

É muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.

O hospital é público, então me transferiram  para uma outra sala com mais umas quinze pessoas. Talvez mais. Era um entra e sai de gente a toda hora. Meus pontos já não doíam mais, no entanto cada músculo meu parecia atrofiar por eu passar horas naquela cama. As vezes minha mãe me levava pra caminhar pelos corredores ou para ir ao banheiro. Ela mal saía do meu lado, as vezes trazia comida porque o hospital estava em falta com muitas coisas, inclusive alimentos.

Como eu ainda não enxergava, comecei a prestar mais atenção nos sons ao meu redor. Era incrível como eu nunca tinha reparado que as pessoas tem um som próprio nos seus passos. Eu já conseguia indentificar algumas pessoas somente pelo compasso dos seus pés. Três enfermeiros se revezavam em turnos, e eu já sabia exatamente o momento das substituições.
Meu celular não estava comigo, então isso era o meu passatempo: descobrir quem estava na sala sem perguntar os nomes.

Ouvi muitas histórias também. Percebi que meu problema era minúsculo perto do que outras pessoas estavam passando ali, a alguns poucos metros de distância de mim.

Meu pai não me visitou durante aquelas duas semanas. Eu preferi pensar que ele estava com tanta vergonha que não conseguia me encarar naquele estado.
Eu não sentia mais raiva dele. Sentia pena. Tive muito tempo pra refletir sobre o que aconteceu e realmente fui muito duro com ele. Minha explosão de raiva também foi um soco pra ele, mas foi um soco na alma, daqueles tipo nocaute na boca do estômago, que deixa a pessoa sem ar e ela cai no chão tentando respirar e então desmaia.

Eu estava fisicamente cego.
Meu pai estava cego em seu espírito.
Eu ouvi algo sobre cegueira espiritual em uma das reuniões de jovens.

"Os que tem olhos mas não enxergam."

Vivem na escuridão, sem saber pra onde vão. Eu sei que ele está assim porque eu era assim. Reconheço os sinais. Minha mãe não é cega, mas é travada, depressiva. Ela conhece a verdade mas não consegue mergulhar nela. Os dois ficam dando voltas e voltas encima do túmulo do meu irmão. É isso. E quando eu falei aquilo pro meu pai, é como se eu tivesse desenterrado o cadáver e o atirado pra cima dele. Mas a culpa não foi do meu pai. Eu tenho que admitir que realmente falei sem pensar. E quando tiver opoturnidade, tenho que pedir desculpas pro velho.

Falando em velho, mas ao contrário, uma criança estava numa cama ao lado da minha. Era um guri de uns dez anos. Tinha uma voz fraca. Quando ouvi seu nome pela primeira vez, não pude evitar as lágrimas.

- Gabriel - disse ele, quase sussurrando - igual ao anjo da bíblia.

Eu sorri, eu acho, e fingi não me importar com a lembrança do meu irmão.

- Pode me chamar de Joe.

- Que nome... Engraçado. - ele quase miou.

A mãe do guri pediu pra que ele evitasse se esforçar e se desculpou comigo, dizendo que ele precisava descansar.

- Eu já dormi muito! - protestou o menino. - agora tenho que fazer alguma coisa. Estou cansado de descansar.

A mãe dele riu um pouco e saiu por uns instantes para atender um telefonema.

- Você nasceu cego?

- Não. Eu caí, bati a cabeça, e fiquei assim. Daí os médicos estão tentando resolver isso.

- Sorte a sua.

- Você enxerga?

- Sim.

- Então por que eu sou sortudo?

- Você tem pernas?

- Acho que ainda tenho - respondi engolido seco, imaginando o que ele diria depois disso.

- Estou te zoando, eu também tenho. - ele riu com dificuldade.

Eu ri alto, alto demais. Ri como não ria a muito tempo. Alguém na sala reclamou, uma enfermeira fez "shhh".

- Ora essa! - falei mais baixo - o futuro da comédia brasileira está bem aqui do meu lado!

- Eu poderia fazer mais pessoas rirem por aqui, conheço umas piadas bem legais.

- Vai nessa, garoto! Tô contigo e não abro.

Ele riu como resposta e ficou em silêncio, sua mãe estava de volta, provavente fazendo contato mental com ele, repreendendo aquele ato brutal de desobediência.

Eu fiquei na minha, me perguntando qual seria o problema daquele garoto.
Acabei adormecendo e tive um sonho:

Via uma garota caminhando, vestia um vestido branco até o joelho, que balançava com o vento. Seus cabelos castanhos eram longos e ondulados. Ela caminhava com dificuldade, contra a força dos ventos que formavam uma tempestade. O dia escurecia com nuvens negras, trovões bradavam, clarões iluminavam o céu durante segundos. Era como se ela segurasse minha mão, me levasse com ela, eu não via seu rosto, apenas a seguia.

O lugar era como um pasto sem bois nem vacas, só a menina e eu andando sem parar.

De repente paramos.

Ela olhava pra frente e via uma mulher sentada numa cadeira de balanço, ninando um bebê, tentando protegê-lo dos ventos. Uma luz muito forte brilhou sobre eles, e um som fez tudo tremer...era um raio!

Atingiu a mãe e o bebê!

Eu fiquei desesperado!

A mulher caiu para um lado e o bebê para o outro. Os dois estavam queimados, foi uma cena horrível.

- Não! - eu gritei.

Enquanto eu corria até eles, percebi que ainda estavam vivos, mas sofriam muito com as queimaduras. Eu estava sem nada em mãos que pudesse ajudá-los.

- Salve-os.

- Não posso. Não sou médico. - respondi à voz.

A menina tocou em meu ombro.

- Quem irá salvá-los?

- Só Deus. - minha resposta saiu como um choro.

- Então leve-os até Ele.

Meu coração acelerado a mil por hora, meu corpo suado, tudo ainda escuro a minha volta. Acordei.

"Leve-os até Ele."

A voz da menina ainda estava fresca. Ecos na minha mente. A mulher e o bebê queimados. A tempestade. O hospital. O garoto ao meu lado. A mãe do garoto.

"Leve-os até Ele."

O dia em que eu pireiOnde histórias criam vida. Descubra agora