A pior guerra do mundo

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Cada parte do meu corpo tremia ao me afastar dos lábios de Amanda.

O que foi que fiz? O que foi que eu fiz?

Amanda permaneceu de olhos fechados por um instante, talvez desejando que fosse tudo um mero pesadelo, e ao abrir os olhos, estaria diante do teto do seu próprio quarto, numa manhã comum de sua vida. Ela abriu os olhos, enfim, e fitou a cama atrás de mim, fungou, cruzou os braços e tentou dizer alguma coisa, mas desistiu. Eu também não conseguia porque era inútil. Voltei-me para a janela, esfreguei os olhos e tentei pensar em alguma coisa, o silêncio estava me matando e tentar conversar também era o fim. Então decidi que a única coisa sensata era me despedir. Destravei a tranca da janela e convidei Amanda a se retirar educadamente. Entreguei a chave do portão, ela prometeu me devolver assim que me visse novamente. Ela saiu em silêncio e não olhou pra mim uma única vez. Eu queria pedir desculpas, e esperava desculpá-la também, só que era tarde demais.

...

A angústia tomou conta do quarto, da cama, dos meus ossos e da minha alma. Eu mal conseguia fechar os olhos que a imagem do rosto de Amanda se refazia diante de mim. Me trazia uma pontada no peito lembrar da culpa estampada no rosto dela. Agimos ambos por impulso.

Desejamos matar um desejo e ao invés disso caímos em uma armadilha cruel montada pelo nosso próprio corpo.

A pior guerra do mundo está dentro de nós. Eu estava tão convencido da minha força que não percebi os sinais. Detalhes, vultos, olhares, minha mãe batendo na porta do quarto.

Eu nunca fui forte o bastante! Que droga! Muito menos inteligente!
Óbvio que isso aconteceria, olhe as circunstâncias!  Como sou idiota!
Minha mente afunilou para um único pensamento: será que Jesus me perdoaria?

Não mereço perdão. Mas a bíblia diz que ninguém merece. Agora eu já conheço, já me converti e caí feio, então não devo merecer mais. Só que foi sobre isso que conversei com Amanda! Eu tentei convencê-la de que havia perdão! Mas sou diferente... Eu fui até curado, orei com um hospital inteiro e muitos se converteram! Eu envergonhei o nome de Jesus, e por isso eu não merecia nada. E se eu tentasse mudar de novo? Começar de zero? Não. Eu causaria mais tristeza, cuspiria na cruz. Seria perda de tempo pra Deus quando ele pode investir em alguém mais forte, mais capaz do que eu. Sou um caso perdido.

Estou perdido.

Não sei o que fazer.

A energia voltou lá para as seis da manhã, foi quando eu decidi sair do quarto para tomar uma água. A casa estava tranquila, a louça um turbilhão. Resolvi lavar aquela sujeira toda para que minha mãe tivesse do que me elogiar e não perdesse tempo com qualquer especulação do que acontecera no meu quarto. Sera terrível para os sentimentos dela. Imagine o meu pai também, prestes a mudar de vida, saber que seu filho tentou e não conseguiu. Talvez ele consiga. Talvez haja esperança pra um de nós.

Os passarinhos estavam cantando desde as cinco. Estendi meu trabalho doméstico para a preparação do café também. Isso matinha a cabeça ocupada. Fiz o café, esquentei os pães no forno, arrumei a mesa e esperei. Lembrei do celular, coloquei-o para carregar, e novamente esperei.
A bíblia continuava aberta sobre a mesa, ela estava me chamando, eu a ignorei. Tive vontade até de fechá-la, mas isso seria suspeito para a mãe. Com alguns por cento de carga, liguei o celular, eram quase sete da manhã, o sol começava a esquentar e dispersar as nuvens. O cheiro de terra molhada era como perfume adocicado. Abri todas as janelas para o cheiro penetrar na casa, enquanto a tela do celular iniciava. Automaticamente o wi-fi conectou e tocou-se o som das notificações que chegavam aos montes. Ouvi a porta do quarto dos meus pais se abrir, e um deles se dirigiu ao banheiro. Ouvi o som da água caindo na pia, depois a descarga. Então minha mãe surgiu na sala e se apoiou na bancada da cozinha americana.

- Bom dia, querido! Você que fez isso?

- Bom dia... - sorri - fui eu.

Ela se aproximou e puxou uma cadeira.

- Não, antes vou chamar seu pai. Ele tem que ver isso!

Eu apenas movimentei os lábios num sorriso sem mostrar os dentes e voltei para o celular, sem prestar atenção em nada especificamente.

As notificações que mais chamaram a atenção foram sobre os vídeos postados a respeito do hospital. Eram muitos. Incontestáveis. Tão reais que os jornais não puderam ignorar e todos começaram a divulgar o fato. Comecei a sentir falta de ar. Até uma entrevista com os médicos eles haviam conseguido. Viralizou em todas as redes sociais. Youtube, blogs, revistas, jornais nacionais e internacionais. Tive medo até de entrar no meu facebook. Meu whatsapp estava cheio de mensagens com links para estas notícias. Outra coisa fez minha garganta travar: uma mensagem de Natalia. Fazia tempo que eu não recebia nada do número dela. O que poderia ser? Eu já havia tomado o cuidado de desativar as visualizações, então ninguém saberia que eu estava lendo tudo.

"Mano Joe, como você está? Eu queria muito te visitar. Todos falam só sobre você, que prova, hein? Não fique com medo, Deus sabe porque você precisa estar aí no hospital. Lembre o velho Otacílio: existem vidas que só serão salvas através de você. Eu acredito nisso. Acredite também. Sei que não é fácil, mas isso te tornará mais forte.
Eu estou bem na alma, mas meu corpo ainda vai mal. Ore por mim assim como eu oro por você. Acho que vou perder de ano na escola. Pedi para minha família te visitar, mas eles estão cuidando da minha internação num hospital no Rio. Talvez eu consiga um transplante... E se não conseguir, está nas mãos de Deus. Espero pelo menos poder te ver de novo..."

Um punhal atravessou meu coração. Natalia era minha melhor amiga e eu traí sua confiança.

Me lembrei então que do momento em que eu estava prestes a beijar Amanda, segundos antes minha mente substituiu a realidade por um sonho, Amanda por Natalia. Mas, por que? Eu nunca pensei em Natalia desse jeito...

Meu corpo estava pregando peças ou eu estava realmente apaixonado?

O dia em que eu pireiOnde histórias criam vida. Descubra agora