O Esmiuçador de Pensamentos

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Às vezes eu acordo pensando que um abraço apertado me salvaria. Mas quando olho pro lado não vejo ninguém. Resignado, fecho os olhos e volto a dormir.



E quando no meio da madrugada os pensamentos reprimidos, esquecidos ou desconhecidos vêm à tona como que com vida. É! Eles têm realmente vida própria, querendo tirar-nos propositalmente a paz fúnebre das noites de sono perdido na alcova. Qualquer um está sujeito a eles. Imagine um cidadão que pela manhã beija a esposa, acalenta os filhos e vai trabalhar. Gozando de um saudável, ou no mínimo normal, ambiente de trabalho, pode até dar-se o direito de uma esticadinha a um happy hour com os amigos, bebendo uma lapada e jogando conversa fora.

No seu carro e com seu case de CDs preferidos, que o faz companhia até seu lar, o homem chega a sua casa e encontra sua família feliz.

A noite chegou e a rotina continua. Podendo até ser quebrada por uma eventual festa de aniversário ou casamento. Mesmo com esse dia perfeito, no silêncio esperado da noite, depois de uma oração tenebrosa por acordar pensamentos polutos, que sabem as horas certas de se manifestarem.

Na "Ave Maria", como que em fleches de luz: pênis em encontro a algum lugar lembrando vagina de virgem coberta por manto branco, rosto angelical e imagens santas eretas. Posições que podem lembrar filmes pornôs. Desde os mais adolescentes aos mais bizarros aperitivos sexuais.

Sem parar por aí, mesmo em volta a tapas na cara, choro e mais reza para os mesmos santos que sua mente acabara de estuprar. Passa-lhe pela cabeça aquele homem na cruz e sexo e pênis e ânus e mais desgraça na minha vida.

Homem normal que pensa estar dominado por forças do mal, mas o mal é incapaz de fazer. Pelo menos é o que ele acha. Depois de muitos soluços, vultos e compressão do corpo sobre a cama em frente à TV ligada madrugada adentro, o rapaz pega no sono com a cabeça pesando toneladas e uma sensação de derrota por um inimigo que parece dormir na mesma cama. Ao seu lado.

Amanhece. Ele faz tudo sempre igual com alterações previsíveis. E a cura? Impossível se curar de pensamento. Ir a psicólogo é perder tempo, a não ser que nem ele se escute. É tipo: escute o que não se responde.

Nunca tentem se colocar no lugar daquele garoto. Garoto bom, normal e negro: pense num recreio, 15h e ao léu num colégio católico, onde todas as freiras e santos espalhados em imagens e quadros parecem dormir andando para o preconceito vistoso.

É impossível descrever sentimento. Ele chora a cada palavra, lágrimas que lhe tiram sangue da alma. Vaga só e arrudiado por crianças normais, iguais a mim, que gozam lépidas sua hora de lanche.

Com seus pensamentos, em qualquer ponto daquele colégio, só, sente-se seguro. Seu corpo treme a cada olhar em sua direção. Preferiria ser invisível a ser um esquecido nos guetos do pátio, enquanto entra em transe imaginário.

Como seria se pudesse participar de cada patota que avistava pela janela de cobogós na estrutura da rampa, ou por reflexos de portas entreabertas.

Ele se revolta quando cinicamente o inspetor o recolhe de seu refúgio e joga-o na jaula com os leões, alegando ser o recreio para se divertir e que tinha que se enturmar, ou seria para sempre uma pessoa tímida e insociável.

Foi esse mesmo indivíduo que viu aquele garoto com os músculos trêmulos quando descia a rampa e na cabeceira, como que a espreita de uma vítima, os bons se reuniam em rodinha, com garotas bonitinhas e descolados da classe.

Vendo-os, o garoto tenta voltar de cabeça baixa e se comprimindo na parede para não ser visto, mas sem demora é escutada uma voz imperativa dizendo: ei você! Volte aqui, você tem que passar por aqui.

A idade: uns 6 ou 7 anos; a conversa proferida e ouvida dali em diante:

_ O que você pensa que é, hein neguinho safado? Você aqui não tem vez. Não tente se enturmar aqui não, se não te darei um murro. Sua bicha negra e gorda, vá! Volta pro seu lugar por aí escondido. E olhe pra mim! Olha pra mim quando eu estiver falando com você. Agora vá, vamos. Vá embora!

E ainda de cabeça baixa, só via o rosto de quem o chamou por reflexos de olhares. É esse o que nunca lhe sairá da cabeça.

Em meio a risadas finas e grossas, tremula a alma, sem dizer uma palavra, em meia volta percorre o caminho do corredor contrário. Ainda sem chorar, e tonto, perdido em um emaranhado de sensações, apressando seus passos, finalmente chega à porta de seu amigo: o Banheiro. Lá dentro, cercado de azulejos beges, surdos-mudos, mas que veem tudo no reflexo limpo de detergente, o menino chora por uns 20 minutos. Se esvaziando de sonhos, desejos, necessidades, ambições, orgulho, amor, ódio, audácia, agilidade, beleza e bondade. Tudo escorre chão a ser limpo.

Sinal toca, alguns papéis higiênicos, ouvido na porta, lava o rosto, mais papéis higiênicos, um respirar profundo e de volta à sala de aula como se nada tivesse acontecido.

Ele ia aprendendo o bê-á-bá dos livros inúteis para a sua pequena vida.

Voltando a casa, só queria um toque, qualquer um, nem que fosse um esbarrão. E depois em seu quarto, olhando o teto e tendo mais uma vez latejantes perguntas. Sua mente quer saber o porquê disso. O que é isso senhor que acontece comigo? Como podem me machucar assim? Como podem me subjugar? Moer-me? Derrotar-me com palavras que não sei de onde vêm. O que é que eu faço? Não tenho respostas. Eu só quero ser caro, um abraço, um aperto de mão. Poder andar, falar, dar minha opinião. Por que não? Por que eu vim ao mundo então? O que foi que eu fiz? Será que eu mereço isso tudo? Será que é para eu ficar quieto e aceitar tudo? Eu realmente devo merecer cada palavra dessas. Eu não sou normal. E é tudo culpa de quem?

Sem respostas ele pega no sono, anestesiado por tanto choro. É comum a pontinha de dor de cabeça. Ainda terá de fazer a lição. Outro dia surgirá. e tudo de novo.

E se batesse naquele garoto? Mas ele não tem vontade de bater. Ele não tem raiva do garoto. Mesmo com seus poucos anos, parece saber que não é culpa dele. E não sabe de quem é. Desconfia de seus pais, da sociedade, do inspetor, não sabe ao certo.

Um murro, um dente quebrado e todos contra ele e chamariam sua mãe e teria que contar aquela humilhante história.

Não, de-fi-ni-ti-va-men-te, NÃO. É muito vergonhoso. Se só respondesse no mesmo tom? se safaria daquele momento e iria até, quem sabe sorrindo, para o pátio. Mas fadadamente poderia ser abordado como coisa preta, tição, neguinho safado, e empurrões, e chutes, e chacotas, e gozações o abrigariam a falar grosso e imperativamente com todos. E sempre.

Não, não sou capaz. Não aguento ter que me defender do que eu sou. Realmente eu não aguento. Sou fraco. Não tenho forças. Voltaria às escondidas para os cantos do pátio. Lugar seguro de onde nunca deveria ter saído.


Zoada de AzulejoOnde histórias criam vida. Descubra agora