A Queimada [Lêdo Ivo] ou Dos Pais de Wendell

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No começo do ano, Sérgio Chevalier Martin acordou com um cheiro forte de queimado e muita fumaça vinda de sua garagem. Desceu coleando as escadas, de pijamas ainda, de traços deitados e marrons, como tudo naquela casa. Quando abriu uma das várias janelinhas da porta da sala que dava na garagem, avistou seu Alfa Romeo branco em chamas, sua garagem e a área descoberta tomadas de fumaça.

A rua estava tomada de gente, seus olhos tomados de dúvida e a cabeça de Frederico, o Fred, tomada de ódio.

Para se entender este aparte na Zoada vamos à graduação em direito em plena ditadura militar no Recife.

Filho de diplomatas franceses falidos, ganhou uma bolsa de estudos com já 20 anos – antes se preocupava em fumar maconha e assistir a séries americanas – cursou o bacharelado e passou no exame da ordem. Chegou a levar o resultado para comemorar com seus amigos que não acabaram a graduação por estarem intercalando-se entre presos e fugindo pelo e do regime.

Com uma placa de metal sabre a porta e indicações de amigos do pai, ligados ao governo, logo criou sua cartela de clientes, muitos do meio político. Da faculdade só restou-lhe a Strella e, com uma bela casa lambida pelo mar da Ponta-Verde ganha de presente dos pais da noiva, os dois, Sérgio e Strella, foram advogar em Maceió.

Ao som de Juliette Gréco, foram noites de brisa e sexo daquele casal de classe média. Ela branca como papel pontilhado, alta, magra e de cabelos cacheados; amarelo, barriga de chope, mão nela, outra portando cigarro; baixo, olhos claros, cabelo calvo. As tentativas luxuriantes de se ter um filho eram frustradas entre o terceiro e o quarto mês.

Algum problema nos óvulos da Strella provocavam abortos involuntários recorrentes.

Com a assistência do Dr. Issac Wendell, famoso obstetra do Nordeste, numa tarde de maio, Madame Strella Chevalier Martin deu à luz seu primeiro e único filho, o pequeno herdeiro de Sérgio, que por sua circunferência já avantajada era mais conhecido por Serjão.

O garoto que só usava branco e era um pouco alourado recebeu o nome de Wendell, em homenagem ao obstetra. O primeiro nome do Dr. Isaac Wendell foi preterido por ser alusivo ao evangelho católico, sendo os pais do pequeno Wendell Kardecistas.

O avô de Wendell, Monsieur François Martin, queria uma família típica brasileira para seu filho, com no mínimo três herdeiros. Pelo-sim-pelo-não mandou que fizessem quatro quartos de criança. Logo os três quartos sobressalentes criaram fantasmas dos anjos que não vingaram. Alguns filhos de amigos do avô do pequeno Wendell queriam conhecer o Brasil, para fazer cursos no Itamaraty ou para férias simplesmente. Enquanto Wendell era mimado pelo "único pretinho que entra nesta casa" - como dizia Serjão –, os dias se passavam calmos e quentes.

No volume quatro, a Linha e o Linho ou Deixar Você se revezavam na tarefa de ninar o pequeno Wendell e imprimia a devoção do casal àquele filho; "e fosse aparecendo aos poucos nosso amor, os nossos sentimentos loucos; nosso amor...."

Wendell foi crescendo convivendo com franceses em sua casa, passando temporadas. Aos quatro anos, já jogava videogame com alguns inquilinos e gostava de escutar as estórias de Frederico.

Fred era um aspirante a escritor, tinha vinte e oito anos quando chegou à casa dos Chevalier Martin. Ele é filho de franceses. Seu pai, Monsieur Abel, era diplomata na América Latina e enviou seu filho para pesquisar cultura brasileira. Fred parecia mais Irlandês que Francês. Calado, claro, que o sotaque – por mais esforçado aluno do curso de português – delatava.

Seu livro girava em torno de Isabelle que se apaixonara por um mulato brasileiro, jogador de capoeira baiano. De férias em País do Loire,o nego Rogério conhece a pequena princesa Bella em Saumur – uma cidade mágica. Dezessete anos e tratada como nobre por seus pais, proprietários de um estaleiro. Ele só passava férias, ela passou a acreditar na vida.

Zoada de AzulejoOnde histórias criam vida. Descubra agora