Um dia quero representar para alguém o que representas para mim.

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Ansiosa por ler o jornal e ver se as pretensas melhores amigas da sua filha morta passaram no vestibular do CESMAC, Sandra abre a porta, pega a Gazeta, e folheia até a página onde consta a lista dos aprovados no segundo vestibular de 1992.

Guardados em especial três nomes, com quem sua filha mais brincava desde o maternal e queriam, como ela, serem médicas quando crescessem.

Dos três, dois ela pôde constatar o sucesso nas folhas do jornal:

Lidiane de Alencar Vilar

Moema da Cruz Barros

Pegou o telefone e ligou para parabenizá-las. Chorou, como já havia chorado em seu discurso na aula da saudade do ano passado. Sandra, professora de Português, é de um carisma só. Acima do peso, ela adora cozinhar. Lembro-me dela trocando receitas com algumas alunas. No final de suas aulas, sempre tinha um epílogo a contar. Era amigona das meninas e dos meninos. Foi com ela que aceitei a possibilidade de ter um desvio mental.

Nas suas provas as repostas eram depreendidas do texto. Mesmo assim, incorria em deslizes da língua, tais como a troca do m por n; t por d; b por p ou o contrário.

"Sou um espécime de arremedo de minha mãe".

Depois de recebida uma avaliação corrigida, eu pude ler várias observações no corpo da prova, cientificando-me dos meus erros ortográficos (como se eu não lhas tivesse).

Mas essas correções eram costumeiras. O que diferenciou dessa vez foi a ameaça feita por ela de escrever no quadro verde-lodo os erros dos alunos, identificando-os ao lado.

Aquilo martelou na minha cabeça por meses até a prova posterior. Nessa, eu prestei mais atenção, suei as mãos e busquei nos enunciados palavras que elucidassem minhas dúvidas. A maioria já estava por lá, era só ter um pouco mais de cuidado.

Os resultados saíram e as observações agora eram positivas.

UFA! Livrei-me desse vexame.

O medo faz a mente reagir, o medo é uma ferramenta de ensino eficaz. Os neurônios se conectam rapidamente em busca de uma solução para o retorno ao status quo de segurança.

Eu continuo trocando as letras, não tive mais o estímulo do medo para seguir acertando.

(Me xinga, vai! Tenta me humilhar mais. Sozinho eu já não dou conta. O ser humano é algo incrível mesmo; a imagem e semelhança de deus, e cheio de defeitos. Defeitos feios que desembocam na porta do meu Quarto. Tenho nojo, tenho medo: sou igualzinho. Sou justo).

A professora Sandra foi convidada de honra dos formandos do Terceirão 91. Ela subiu ao palco e deu um depoimento emocionante:

(chorosa) Eu fiquei muito feliz com esse convite para prestigiar a Aula da Saudade de vocês. Se não me tivessem convidado, eu viria assim mesmo (risos). Essa seria a turma onde minha filha, Laís, estaria se formando, caso estivesse viva. Como vocês devem saber, a Meningite tirou minha filha abruptamente de mim há sete anos.

Recomeçar a vida, quer dizer, continuar a viver nesse mundo sem minha filhinha será para sempre difícil. Só continuo nele, pois temos que aceitar as aprovações divinas. Ele, Deus, sabe o que faz. E não acho que ele só manda a carga que podemos suportar, ele sim, manda a carga que merecemos. Não cabe a mim, julgar suas decisões. Outras vidas eu vivi, outras viverei. Tudo se encaixará no decorrer das minhas reencarnações.

(As irmãs presentes dão a entender que se manifestarão. A irmã diretora chega a levantar-se, mas não fala nada).

Minha filha aparece-me em sonhos recorrentes, quem estudou comigo já deve ter ouvido ao menos uma história. Ela me acalenta, foi ela quem me fez entender. Não aceitar...

Zoada de AzulejoOnde histórias criam vida. Descubra agora