Meu gato Údson

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Quase no fim do meu passaporte, tirei uma nesga de salsicha e joguei no chão, para o meu gato. Ah! Eu já ia me esquecendo; eu tenho um gato de estimação.

Chego a minha casa e estranho não haver ninguém lá. Só meu pai, que abre a porta. Vou ao meu quarto e tiro aquela farda bege – cor de nada – do corpo. Nunca entendi aquela cor bege da farda. Não era escura demais para disfarçar poeira, nem clara demais para transmitir conforto.

Um cheiro de cuscuz me leva até a cozinha: é cuscuz com pedaços de banana e carne moída.

Sento-me à mesa e noto uns olhares em minha direção. Mesmo sem vê-los, noto-os, sinto-os.

Meu pai está na pia lavando pratos e olhando pra mim.

Achei estranho. – ele não é de encarar ninguém nos olhos –. Até pode olhar, mas por trás. Devia querer dizer várias coisas, julgar vários atos, contribuir com vários pitacos, mas só olhava por trás e pensava.

Aquilo me incomodou de um tanto que larguei o garfo e a faca e o encarei também. Afinal eu estava em casa. Nada de muito grave acontece em casa.

Ele se aproxima da mesa lentamente. Fico estático, esperando ele coordenar tudo. Só continuei olhando-o fixamente, ele disse:

_ Sua mãe e os meninos foram levar o Údson ao veterinário.

Desdenhando: _ Foi! e o que é que ele tem?

_ Sei lá, ele saiu bem mole, levaram ele numa caixa de papelão forrada com uma camisa sua.

Ele continuava olhando pra mim. Não sei se fui justo no meu julgamento, mas me pareceu que ele usou de sadismo para me fazer chorar. Ao invés, comi dois pratos de cuscuz e tomei dois copos de café. No finalzinho do último copo, fiz minha papa de leite ninho. É só cobrir o fundo do copo com leite e misturar ao pouco de café remanescente. Quando conseguir a consistência de uma papa, é só comer de colher. Uma delícia!

Na sala, assistindo à TV, escuto o barulho do portão abrindo. É mainha que chega com meus irmãos – incluindo o Bicho. Nos braços, traz minha mãe uma caixa de papelão. Despreocupado vou lá lentamente pegar o meu gato. Mas na caixa Údson está morto. Todos olham pra mim, como meu pai, querem me ver chorar.

Eu não choro na frente de ninguém, a não ser que não consiga segurar mesmo, que seja um motivo forte, avassalador. Mas morte! Uma mortezinha de nada. Já chorei a morte de tanta gente. Já imaginei a morte de quase todos da minha família, imaginava com detalhes e induzia o choro. Tentava pensar em algo para chorar escondido, mas só a morte não era um bom provocador. O sofrimento me abala. A morte não.

Eu que chorei por 30 minutos seguidos naquela tarde, não verti uma gota sequer diante da morte.

Quando me transporto a esse cenário, meu objetivo é gastar lágrimas. Ter uma razão para poder chorar em paz. Contudo gastava lágrimas sem provocá-las no banheiro do colégio, e meu gato Údson – que vida curta ele teve nesta história – não foi o bastante para nada. Acho que causei decepção em alguns.

Como diria Sylvia Plath "Colinas somem na brancura,

enquanto homens ou estrelas me observam desapontados comigo..."

Só quis saber as razões práticas praquilo ter acontecido: a causa; quem percebeu primeiro; a qual veterinário ele foi levado e que preço cobrou.

Umas horas sem o Údson é tempo de menos para provocar algum sentimento. Se ele tivesse fugido, fosse ao incerto, mas à morte! Essa é um prêmio certeiro para quem vai e para quem fica.

Acho até que sinto inveja dos que em minha mente morreram!

Zoada de AzulejoOnde histórias criam vida. Descubra agora