[ATO 3] HESITAÇÃO

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Recomendações de música:

"Tristeza separación", por Astor Piazzolla.

"Lonesome town", por Ricky Nelson; e "But not for me", Ella Fitzgerald (inspiração para a subjetividade de Kim).

"Poema", por Ney Matogrosso (inspiração para a subjetividade de Porchay).

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Organizei uma playlist do Spotify com as faixas sugeridas no início de cada capítulo. Para maior imersão, ouça-as durante a leitura! Você pode encontrar o link na minha bio!

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Dos atos, o hiato.

Kimhan e Porchay continuaram se encontrando com frequência, em razão da necessidade de preparação para as gravações da série, mas a interação entre eles reduziu-se sensivelmente. Não sabiam se isso era muito evidente para o resto do elenco, mas ambos, a despeito do desconforto gerado pela situação, não se importavam. Sentiam-se suficientemente confortáveis por não terem de atuar novamente em uma cena como aquela por alguns dias. Isso era tudo.

O mais novo evitava retribuir o olhar sustentado que o outro lhe direcionava. Sentia-se perfurado, desmascarado após o cometimento de um grave erro. Sua memória e seu corpo traziam, agora, as marcas de uma volúpia secreta. Não se sentia preparado para encarar esse fantasma, apesar de ele pesar-lhe nas costas e na feição. De algum modo, isso que era silencioso e silenciado se revelava a Kim. Não como um fantasma, exatamente. Apenas se podia dizer que havia algo diferente.

O sorriso sempre moleque do jovem luzia com um brilho peculiar ao homem. Era decerto vergonhoso e angustiante, para ele, prestar-se a tal contemplação insistente, mas aquela sutil dissemelhança lhe era magnética pelo espanto que causava. "Será que ela tem algo a ver com o que ocorreu entre nós naquele dia?", meditava num canto da sala, sentado no chão em meio à cotidiana algazarra dos ensaios.

Porchay tentava agir normalmente, compondo aquele coral ensurdecedor, mas isso era mais difícil para Kimhan. Durante as poucas noites que se seguiram à que compunha o fatídico cenário de sua perversão, este era atacado por imagens oníricas nas quais a pele de seu rosto caía, assemelhando-se a uma porção de tinta que, seca apenas na superfície, acabara por despencar e escorrer. Por baixo dela havia carne apodrecida, de tão velha. Não era mais assim tão jovem, afinal.

E de longe ele pousava os olhos demoradamente em seu colega, reparando nos traços do auge de sua recém-chegada adultez. Apesar do não-sei-o-que que alterava suas feições de algum modo, notava que sua pele ainda esticava-se sem tantas marcas de expressão. Ele era assim tão mais jovem, afinal...

Começava a ficar complexado com sua idade, menos por ter vivido seus 29 anos do que por serem nove de diferença em relação ao menor. Esse outro hiato — o do tempo — podia traçar uma ruína que não era a dos traços de seu envelhecimento, mas a da imagem que construiu de si para si mesmo. Pois assim eram as coisas para ele: não se podia ter nenhuma garantia vinda das outras pessoas, então dever-se-ia procurá-la na interioridade. Tendo esse pensamento como ponto de referência, por um tempo acreditou já haver desvelado todas as camadas de sua subjetividade. Que se conhecia por completo e que nada lhe escorregaria das alongadas mãos a seu respeito. Que havia conseguido, graças ao tempo, moldar-se a ponto de alcançar a mais consistente transparência ao encarar seu reflexo no espelho.

Mas não era mais o caso.

Será mesmo que em algum momento havia sido?

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[KimChay] Entre takes e manchetes (A primeira vez)Onde histórias criam vida. Descubra agora