Conto - O porão de Arthur

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Algemada junto à pilastra, Rayana não distinguia muita coisa na escuridão do velho porão. Já estivera ali antes, sabia que em certo ponto havia a escada que conduzia ao piso superior, havia a empoeirada cômoda que fora da bisavó de Arthur, alguns objetos sem importância que se aglomeravam pelo local, como ferramentas, cadeiras quebradas, porta retratos sem fotos, roupas antigas, entre outras quinquilharias.

Rayana era uma mulher forte. Chorava, não por ter sido aprisionada, mas sim por ter sua confiança traída por alguém que amava. Arthur, seu novo namorado. Novo, porém antigo conhecido, lá dá época do colegial. Algumas trocas de olhares que só vieram trazer algo à tona anos depois. E agora afundara a garota num mar de frustração.

O que esperar daquela situação? Algumas coisas monstruosas passaram pela cabeça da moça. Sequestro? Violência? O que Arthur queria afinal, dinheiro? Ou seria uma espécie de assassino em série?

Entretanto, a verdade estava muito, muito além e a garota jamais ousaria imaginar o que estava por vir...


* * *


Um dia inteiro se passara sem que pudesse se mexer. Não recebera água nem comida, sequer ouvia qualquer ruído no andar de cima. Nem sinal de Arthur.

Rayana, a morena de cabelos longos e lisos, com 25 anos completos e dona de uma pequena fortuna - incomum para sua idade - sentia as consequências da falta de alimentos e principalmente água. Sua boca estava seca, a língua colada no céu da boca, a cabeça doía e seu estômago roncava estrondosamente. Sentia tontura, mas se contentava em ao menos estar sentada, evitando um desmaio. Precisava se manter alerta e, por Deus, principalmente viva.

Estava no auge da idade, da faculdade e iniciando sua carreira. Não admitia ter sua vida interrompida agora. Ainda mais por um - agora ex - namorado. Ah, se pudesse por as mãos naquele pilantra!

Com tantos sintomas associado ao seu estado físico debilitado, Rayana imaginou, a princípio, que o que viu também era fruto de sua desidratação. Primeiro uma névoa invadiu o ambiente, parecia uma mistura do gelo seco utilizado em eventos com uma camada de poeira, ligeiramente espessa e levemente acinzentada. A névoa trouxe um odor desagradável ao local, como de peixe podre. Após alguns minutos, se dissolveu expondo pequenas criaturas que vinham de um dos cantos escuros do porão. A iluminação precária dificultava Rayana de discernir o que se arrastava sorrateiramente pelo chão. Mas quando as pequenas sombras se aproximaram, a garota não pôde conter o grito alto e estridente que se formou em sua garganta.

Eram aranhas! De várias espécies, formas, cores e tamanhos. A pior visão do mundo para a moça, que possuía pavor por aranhas desde criança. Os artrópodes se aproximaram sem hesitar e tomaram conta de seus sapatos, subindo através das calças, percorrendo os braços presos pelo pulso, até se emaranharem em seus longos cabelos.

O desespero poderia ser tocado naquele instante, havia virado algo palpável, tanto era o horror que a garota sentia. Com as mãos atadas, não conseguia se desvencilhar com sucesso das criaturas. Distribuía chutes e chacoalhões no quadril e nos cabelos repetidamente. Aos poucos, as aranhas perderam o interesse e começaram a deixar a garota, dispersando-se e simplesmente sumindo do local.

Foi então que encontrou forças para gritar por ajuda. Gritou por longos minutos, até sentir a garganta arranhar. Nem um sinal de que alguém a ouvia. Sentiu a fraqueza invadir todas suas vértebras, músculos e órgãos. Mas seu coração mal teve tempo de parar de pulsar na boca, quando uma nova nuvem de fumaça surgiu, dessa vez com aroma doce, trazendo consigo uma sonolência boa. A garota adormeceu em instantes.

Ao abrir os olhos, encontrou Arthur a encarando. Sentiu o ódio pulsar em suas veias e lhe dar uma recarga de energia.

- Rayana, não queria que passasse por isso, mas simplesmente não tenho escolha. Não posso... Não podia mais seguir em frente... Sinto muito.

- Você sente muito?! Olha o que fez para mim! Por quê? - indagou a moça.

- Era a minha vida ou a sua... Desculpe-me, mas não podia... Este porão é habitado por uma força superior, e terrivelmente maligna... Pior do que qualquer mal que os humanos conheçam.

- As aranhas?! O problema não são elas e sim quem as colocou aqui! - berrou Rayana.

- A criatura... Esta que te falei... Ela lhe trouxe seu pior pesadelo, o materializou e se alimentou desse medo, entende... Ela sabe qual é o seu pior medo. É assim que ela sobrevive.

- Você está louco! Me solta! Quem você pensa que é! - urrou a garota enquanto se debatia.

- Ela está vindo e está faminta, preciso ir, sinto muito - disse Arthur enquanto se dirigia às escadas e sumia na escuridão.

Um grito de pavor congelou na garganta de Rayana. No mesmo instante em que o rapaz sumiu, uma criatura surgiu a passos lentos, arrastando-se pelo porão, trazendo consigo a névoa, o aroma de peixe podre e um mar de horror: vultos que agonizavam e rodopiavam pelo local soprando um ar gélido que arrepiaram seus cabelos. Os gritos transmitiam o horror mais sombrio da alma. A criatura parecia vinda diretamente de um pesadelo, não se assemelhava com nada deste mundo. Havia leves traços humanos, de fato, porém o que surgiu nas sombras não estava nem perto de ser humano.

Seu corpo era formado por aglomerados de pele, carne e ossos, não possuía braços ou pernas, sendo somente apenas um amontoado de massa disforme. Havia um véu negro cobrindo o que deveria ser a cabeça, enfeitada com olhos que transpassavam o véu e expunham órbitas vazias. Traços de sangue escorriam pelas extremidades da criatura e formavam um rastro viscoso no chão.

Em um piscar de olhos, a criatura desapareceu como num passe de mágica. No próximo segundo em que Rayana piscou, o porão havia sido tomado totalmente pelos vultos agonizantes. Todas as almas pareciam transmitir a mensagem de que a garota já estava morta. Ela gostaria de estar morta, na verdade. Rayana não sabia em que momento a vida real havia se confundido com a realidade em que estava. Não sabia se as horas naquele lugar passariam do mesmo modo como na vida real. Ou se ela estava no purgatório, ou no inferno.

Mal sabia que não precisava ter dúvidas, porque, afinal, nunca teria as repostas. Sua vida congelou assim como aquele momento. A criatura estava faminta.

Taquicardia e outros sintomas do medoOnde histórias criam vida. Descubra agora