Conto - Devastados

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O mundo agora é cinza. Há algumas décadas o homem esgotou os recursos naturais, os termômetros explodiram com as temperaturas exageradamente altas, metade das florestas do mundo queimou. Agora respiramos através de tubos de oxigênio obtidos em laboratório, pois o ar é extremamente poluído. O céu é cinza o tempo todo e a fuligem nunca para de cair. Todos os animais morreram, por isso nos tornamos vegetarianos, porém nosso cultivo requer muito dinheiro para criar nossas plantas em estufas. Não podemos mais fazer nenhuma atividade física ou nada que requeira muito esforço, pois nossos pulmões estão muito comprometidos. Nossa pele se tornou áspera e morena, como forma de adaptação ao sol forte o ano todo, pois não temos mais estações. Metade da população foi extinta, os que não puderam arcar com as despesas com o oxigênio sufocaram até a morte. Nosso governo enlouqueceu, ninguém quis assumir responsabilidades, fomos deixados ao acaso. Quase não temos emprego, quase não temos mais vida, nossa sobrevivência tornou-se a única coisa importante. Nunca mais vi o céu azul, nunca mais brinquei no parque, nunca mais vi metade das pessoas que faziam parte da minha vida. Sempre imaginei que o mundo acabaria um dia, mas não nunca imaginei que seria tão triste.

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Abro os olhos para mais um dia comum, embora comum seja a palavra menos apropriada para o momento. Não tenho mais trabalho nem escola, perdi ambos quando a crise chegou. Muitos equipamentos eletrônicos pararam de funcionar com as alterações climáticas que sofremos. Creio que haja muito mais por trás disso, de fato. Obviamente, a loja de roupas na qual eu trabalhava não se adaptou. Algumas escolas continuam funcionando, embora metade dos funcionários não tenha sobrevivido. Infelizmente só os alunos que moram perto podem frequentá-la, atravessar quilômetros sob o sol forte sem oxigênio não é uma tarefa possível para mim, por isso passei a acompanhar o conteúdo das disciplinas em casa. Estudar é uma das poucas coisas que me mantém lúcida na atual realidade.

Entretanto, levantar da cama cedo é algo que não mudou: continua tão difícil quanto antes. Estico os braços e as pernas, bocejando alto. Um dia a mais, um dia a menos, já não importa tanto. Por sorte algumas espécies de frutas se adaptaram ao clima, tornando possível desfrutá-las no meu café da manhã, apesar de sentir extrema falta de um copo de leite geladinho para acompanhar. Mas se existe algo que aprendi nesses dias é que devemos sempre agradecer pelo que temos antes de revogarmos o que não temos. Aceitei essa forma de ver o mundo como algo que também me deixa lúcida. Estamos vivos, sobrevivemos, e vamos batalhar para continuarmos vivos, afinal.

Até porque existe coisa pior. Engana-se quem pensa que o clima árido, a falta de oxigênio ou de empregos, ou até mesmo a falta de um governo, são nossos piores problemas. Nosso maior desafio são as criaturas. Há diversas teorias sobre o surgimento das criaturas, alguns dizem que o derretimento das calotas polares os descongelou, outros dizem que foi a adaptação de alguma espécie animal ao clima, embora saibamos que nenhum animal sobreviveu à falta de oxigênio. Há quem diga que são seres vindos de outro planeta ou até mesmo que são criaturas do Apocalipse que vieram alertar que o fim está próximo. Considero essa teoria interessante, embora tenha me tornado cética nos últimos meses. Mas as criaturas são monstros. Enormes, compridos, com quatro garras afiadas, cauda longa, dentes pontudos. Possuem pele grossa e de cor marrom areia, por isso facilmente se camuflam em nosso ambiente, que costumo chamar de deserto. Essas criaturas também possuem asas, extremamente grandes e pontudas, capazes de carregar as toneladas que provavelmente pesam.

Nunca vi um de perto, mas já ouvi muitas histórias sobre esses seres. Há quem ainda se mantenha cético e diga que muitos enlouqueceram ao afirmar terem visto essas criaturas, mas nada do nosso antigo mundo seria capaz de decorar nosso deserto como esses monstros. Nada sem dentes pontudos e garras tão afiadas poderia tingir de sangue uma cidade inteira, nada seria capaz de dilacerar a carne dos sobreviventes e deixá-los sob o sol quente. Nada humano seria tão sádico e cruel a ponto de devastar a humanidade. Somos uma raça em extinção.

Taquicardia e outros sintomas do medoOnde histórias criam vida. Descubra agora