Sou mordida. A dor que irradia do braço para todo o corpo é insuportável, parecendo destruir os tecidos, as artérias e os ossos. Na verdade, eu posso ver o osso do meu braço agora, qual será mesmo seu nome? Está exposto abaixo de um pedaço de carne levantada e o orifício sangra como um vulcão em erupção. Chuto o zumbi estúpido distância suficiente para eu alcançar a faca que utilizo como arma e enfiar no olho da criatura.
Vocifero um palavrão enquanto arranco minha blusa para enrolá-la no braço a fim de estancar o sangue. Nada sexy. As clavículas saltam e minha barriga está em pele e osso. Nem me lembro quando foi que fiz a última refeição decente.
O mundo agora é destruição. Vi todos que amava virarem mortos vivos sem alma, vi minha cidade ser destruída, vi através dos noticiários homens saudáveis saquearem e assassinarem outros por motivos banais. Mas também vi pessoas lutarem com todas as forças contra essas criaturas. Perdendo suas vidas, suas famílias e as esperanças.
Tive sorte até agora, se é que posso chamar isso de sorte. Consegui sobreviver por estar em casa no dia em que tudo começou. Se estivesse no trabalho, como papai e mamãe, ou se estivesse na escola como minha irmã caçula... Não poderia ter me preparado. Ninguém sabia o que estava acontecendo, tantas pessoas tentaram ajudar os que pareciam doentes e acabaram mortos. Ninguém imaginava que teriam membros arrancados ou seriam devorados até a morte. Quem poderia imaginar, afinal?
E tudo se espalhou tão rápido que em 24 horas Nova Jersey virou um caos. Para ajudar nenhum celular funcionava, então não consegui sequer entrar em contato com minha família. Fiquei dias trancada em casa, comendo pouco, assistindo aos noticiários da TV e rezando para que minha família voltasse. Mas ninguém voltou. E não demorou muito para que todas as emissoras saíssem do ar. Um tempo depois, toda a energia elétrica acabou.
Eu passei grande parte do tempo trancada em meu quarto no andar de cima, escondida sob as cortinas da janela, buscando alguma esperança na multidão de zumbis que arranhavam a porta. Sabia que era um apocalipse como nos filmes, sempre sonhei em vivenciar algo tão emocionante, mas agora me sinto completamente estúpida por ter desejado isso algum dia. Com certeza na minha mente as coisas não seriam tão apavorantes e terrivelmente detestáveis... Meus pais teriam sobrevivido, minha irmã também, e eu seria alguma espécie de heroína. Chorei todas as noites e às vezes também durante o dia, desejando que tudo mudasse num piscar de olhos. Não irá mudar. Vi meus pais na multidão, mas não da forma como desejei.
Abandonei minha casa quando as criaturas conseguiram entrar. Destruíram a porta de madeira que dá acesso ao quintal, infelizmente a madeira não estava nas melhores condições, e quebraram a porta de vidro. Desesperada com o som do estilhaçar do vidro, demorei a conseguir agir rápido. Após me desvencilhar do meu atacante, não pensei duas vezes ao pular da janela do meu quarto para o telhado, não esquecendo de pegar minha mochila antes que mais um zumbi me alcançasse. Por sorte deixei uma mochila pronta, com uma faca grande de cozinha, garrafa de água e um pouco de comida dentro. Sei que precisarei de muito mais fora de casa. Mas tento não pensar muito nisso.
Acampar sob o telhado não é uma boa ideia, mas pelo menos os zumbis que me seguiram caíram pela janela antes de me alcançar, exceto, é claro, o felizardo que atacou meu braço. Então, teoricamente, estou segura por enquanto. Preciso aproveitar o tempo sozinha para traçar uma rota de fuga em minha mente que não me leve diretamente para a morte.
Sem querer, deixo escapar uma risada. Alta e histérica. Já estou a caminho da morte. O sangue ainda escorre quente e pegajoso pelo buraco com marcas de dentes. Sento sob o telhado com uma dúvida fatal. Penso na faca na mochila. Volto os olhos para meu braço. Será que conseguirei fazer isso sozinha?
Sair do telhado em busca de um abrigo seguro será estupidamente mais difícil sem um braço. Já é bem difícil com os dois, aliás. Mais tarde, penso. Mais tarde irei cortá-lo.
Salto mais uma vez, agora alcançando a parte mais baixa do telhado. Mais um pulo e estarei no chão, em meio à multidão de zumbis e sua sinfonia de grunhidos sem fim. Em meio ao cheiro de podridão e sangue seco. Torço o nariz com o pensamento, isso definitivamente não está ajudando.
Estou prestes a dar o último salto quando um som alto explode à minha direita. Olho confusa, juro que o som se assemelha ao de uma panela sendo jogada longe. Os zumbis são atraídos pelo som e aproveito a deixa para dar o último salto e conseguir correr livre até algum lugar. Ainda não sei para onde ir, mas estou correndo o máximo que posso em direção oposta ao som e aos zumbis.
De repente avisto um homem. Não um morto vivo. Um rapaz jovem e sujo, mas vivo, correndo em minha direção.
— Venha! — ele exclama.
O sigo pelos destroços, pulando cercas, desviando de carros, desferindo alguns chutes em cabeças de zumbis. Estou arfando, suada e exausta quando finalmente chegamos aonde quer que o rapaz tenha me levado.
É uma casa. Rapidamente ele tranca as portas com correntes e desaba no chão.
— Estamos seguros agora.
— Eu pensei que ninguém mais tivesse sobrevivido — digo com a respiração falhando.
— Ah não, não somos os únicos. Há mais sobreviventes espalhados por aí. Infelizmente somos uma parcela muito pequena. Eu estava com meu irmão... o perdi há poucos dias, desde então estou sozinho... — diz o rapaz entre soluços. — A propósito, sou Brian.
— Sou Andreza. Perdi toda minha família. E ainda tem isso — mostro a mordida em meu braço.
— Ah meu Deus... — o homem balbucia.
— Irei amputar... Já teria feito isso se os zumbis não tivessem me seguido. Não teria forças para escapar sem um braço.
— Eu te ajudo — diz o homem com palavras firmes, visivelmente já recomposto.
Tiro a blusa que utilizava como atadura e exponho a ferida, agora muito mais macabra. Há pontos em tons tão escuros e vermelhos que parecem negros. A pele mole sob a ferida está pendendo em uma posição não natural. Ainda escorre sangue por toda sua extensão. O cheiro metálico e asqueroso invade minhas narinas fazendo meu estômago revirar.
O homem analisa com cuidado a extensão dos ferimentos. Precisará cortar o braço todo.
Um instante depois ele volta com um frasco de álcool, gazes, tesoura e algumas faixas de pano. Olho com apreensão para tudo aquilo, enquanto retiro com cuidado minha faca da bolsa. Brian a pega sem dizer uma palavra. O silêncio invade todo o ambiente, me fazendo, por ora, esquecer de que quase toda a população virou morta viva.
O rapaz desinfeta a faca com o álcool. Olha para mim. Retorno o olhar, mas agora seus olhos não me encaram. Com delicadeza, puxa meu braço. "Não olhe", sussurra. Obedeço. Encaro o chão, por instantes que parecem eternos.
Meu grito esganiçado ecoa pela casa. A dor é lacerante, insuportável, indescritível. Antes que eu possa fazer qualquer coisa, vejo o mundo escurecer. Desmaio em meio aos zumbidos da minha própria dor.
Abro os olhos com cautela. A luz queima minha vista à medida em que me acostumo com a claridade. Estou em um quarto, deitada. Avisto um rapaz sentado ao meu lado. Brian. Recordo-me de tudo imediatamente. Sangue, álcool, dor... Arrisco uma olhadela para meu braço esquerdo. Que merda. Amputado.
— Te dei uns analgésicos — Brian diz. — Também limpei e estanquei o sangue.
— Obrigada — é tudo o que consigo dizer.
Ainda sinto muita dor, apesar dos remédios. Mas talvez exista esperança. Se não vou me tornar morta-viva, talvez ainda exista esperança afinal.
— Vamos partir em breve, assim que você estiver melhor. Já havia planejado ir embora, mas quando te vi naquele telhado não pude ir sem antes ajudá-la.
— Para onde vamos? — pergunto confusa, sem assimilar completamente as palavras.
— Para o sul. Certamente encontraremos ajuda por lá.
Assinto.Não sei direito o que pensar, pois a dor e os analgésicos confundem minhacabeça. Mas estou grata por ter encontrado Brian e uma luz no fim do túnel. Umaesperança para escapar daqui. Para escapar dos mortos vivos. Mesmo que metadede mim tenha ficado, tenha morrido, a outra metade pode conseguir fugir...
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Taquicardia e outros sintomas do medo
TerrorRespiração ofegante, frequência cardíaca cada vez mais elevada, boca seca e amarga, calafrios por todo o corpo, pelos eriçados, pernas que parecem pesar toneladas. Às vezes, o medo causa um pico de adrenalina que lhe permite correr para longe. Contu...