07 de junho. Meu aniversário. Grande coisa. A inflação aumentou, o preço da gasolina também, talvez haja uma guerra lá pelos lados do Paquistão e minha cidade continua em estado de alerta pela falta de chuva. Mas sim, também é meu aniversário.
Poderia ter sido bom se eu sequer tivesse um pedido para fazer na hora de cortar o bolo que eu mesmo comprei, no mercado, horas mais cedo. Não consegui pensar em nada, acho que nada do que eu pedisse melhoraria minha vida. Talvez alguma companhia para cortar o maldito bolo comigo.
Irritado, deixo o bolo em cima da mesa, com marcas de facadas após tentar matá-lo várias vezes. Não preciso de açúcar, preciso de álcool.
Saio de casa apenas vestindo um casaco grosso para o vento frio da noite escura e sem estrelas sob meus trajes velhos. Sorte ou não, há um bar perto. Não um desses bares de esquina não, mas um bar de gente bacana, elegante, estiloso.
Apago o cigarro que havia acendido automaticamente ao sair de casa, jogando a bituca ainda acesa no chão e esmagando-a com as solas gastas das minhas botas. Sou atendido logo ao entrar no bar, embora a garçonete tenha desaprovado minha aparência cansada e mal acabada. Pálido, com olheiras fundas e fedendo a cigarro. Que se foda, é meu aniversário.
A moça bem arrumada, com uniforme impecável e maquiagem de festa, sorri para mim enquanto me conduz até uma mesa vazia nos fundos do estabelecimento. Quando adentro pela meia luz, me sinto em casa. As paredes em cores escuras, com todas suas sombras e nenhuma nitidez. Minha mesa, longe do bar, é ainda menos iluminada. Ótimo.
Agradeço-a enquanto peço uma dose de uísque. Não, uma dose não. Uma garrafa, por favor, que hoje é meu maldito aniversário.
O bar Kniven Steak&house mantém um estilo underground que atrai cada vez mais o público jovem. Há uma música ambiente que mal se é ouvida perante as gargalhadas e conversas altas do local. Algumas pessoas aglomeram-se em frente ao bar, ao passo que eu só me encolho cada vez mais em minha cadeira, com minha garrafa de uísque, agora muitas doses a menos.
Entre uma e outra golada, a consciência se acalmando e anestesiando meu corpo, observo as mesas ao meu redor. Em sua maioria jovens. Todos parecem comemorar algo, sorriem, brindam, gargalham. Nenhum se afunda na bebida gelada e forte, comemorando ou não seu aniversário.
É noite de quarta. O bar logo se esvazia, restando apenas a música de fundo, que até agora não reconheci o cantor, e as luzes sombrias que incidem nas paredes escuras. Alguns garçons andam para cá e para lá, ansiando pelo fim do expediente. A cidade dorme cedo.
Pago minha conta e agradeço a atendente, que agora me desfere um sorriso cansado. Confiro o relógio de pulso: meia noite. Levanto da mesa a passos lentos, levemente trôpegos, minha cabeça gira um pouco, mas me sinto bem melhor. Até permito me esquecer do bolo.
Saio para uma noite fria e úmida. As marcas no chão de concreto confirmam que choveu há pouco. A brisa fresca inunda minha alma, aspiro com inalações lentas e profundas o ar noturno.
Minhas botas agora deixam pegadas no chão enquanto caminho até minha casa. A rua está silenciosa, escura, levemente macabra. Todos dormem, enquanto eu comemoro: meu aniversário ficou para trás.
30 anos.
E nada do que eu pretendia fazer minha vida inteira, feito.
Contudo meus pensamentos somem segundos após surgirem em minha cabeça. Anestesiado. Melhor assim. Sem preocupações enquanto o álcool é lentamente filtrado em meu sangue.
Sem preocupações até encontrar uma mão decepada um passo a minha frente.
Inerte, me encarando, em uma poça de sangue escarlate, com um brilho perturbador.
- Estou vendo coisas.
O vento não me responde. Em contrapartida, a mão ainda me encara. Semicerro os olhos, para me garantir de que é apenas uma mão e não duas. Maldito uísque.
Olho ao meu redor, por entre as ruas escuras e o céu sem lua. O vento faz as folhas das árvores farfalharem, como risadas zombando de mim. Tomado por um súbito destemor, provavelmente fruto do álcool que fervilha em meu sangue, abaixo-me de encontro à mão.
O mundo todo gira e rodopia enquanto eu me agacho, fazendo me sentir num carrossel. Por que, diabos, me abaixei mesmo? Ou melhor, o que passou pela minha cabeça para querer ver melhor essa cena horrível?
Enjoado, sinto o uísque amargar na minha garganta, rapidamente me afasto e vomito no chão, tão próximo dos meus próprios pés que imagino todo meu conteúdo estomacal sob seus sapatos e o quanto demorarei para deixá-los brilhando novamente.
Com passos apressados, a cabeça pesada e o gosto amargo na boca, volto para minha casa, limpando a marca de alguma coisa no casaco pelo caminho. Não lembro o quê.
Quando deito no sofá, finalmente o mundo se apaga por completo.
* * *
Henry Stiller está numa ressaca daquelas. A claridade ofusca sua vista, fazendo os olhos lacrimejarem contra sua vontade. A cabeça dói tanto que o homem imagina quantos analgésicos precisará tomar antes de ir para o trabalho. Seu hálito cheira a bebida apodrecida e suas roupas a vômito velho.
A noite passada é um borrão em sua mente. Henry mal se lembra em qual bar foi. Provavelmente no Kniven, que é o mais perto. Levantando-se do sofá, atravessa a cozinha e se depara com o bolo ainda na mesa. Talvez se sirva de uma fatia no café da manhã, a glicose lhe fará bem.
Como não encontra a faca, arranca um pedaço com a mão mesmo. O sabor inebriante do chocolate misturado ao leite condensado faz suas papilas gustativas dançarem. A sensação quase compensa a ressaca. Quase, pois sua cabeça ainda lateja de forma contínua e sôfrega.
Lambendo os dedos e os restos do glacê, Henry não sente falta da faca que utilizou para esfaquear o bolo na noite anterior.
Quando joga suas roupas na máquina de lavar e entra em um banho quente, seus pensamentos sobre a noite passada são totalmente esquecidos e lavados com água e sabão, como seu corpo.
Talvez Henry tenha um anjo da guarda fazendo um bom trabalho. Ou talvez seu deus perdoe os esquecidos. A polícia nunca bateu na sua porta. Contudo, Henry jamais se recordará desse episódio, assim como nunca recordou das dezenas de vezes anteriores que assassinou e esquartejou alguém enquanto estava bêbado demais para se lembrar de qualquer coisa no dia seguinte.
Afinal, aquela mão apenas havia lhe servido o uísque horas antes, como Henry poderia se lembrar de algo tão supérfluo?
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Taquicardia e outros sintomas do medo
TerrorRespiração ofegante, frequência cardíaca cada vez mais elevada, boca seca e amarga, calafrios por todo o corpo, pelos eriçados, pernas que parecem pesar toneladas. Às vezes, o medo causa um pico de adrenalina que lhe permite correr para longe. Contu...