Conto - Rosana, a carnívora

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Ganhei uma planta no meu 11º aniversário. Para falar a verdade, importunei meus pais por meses para ganhar uma plantinha. Não queria uma rosa, uma orquídea, tampouco um vaso de flor, queria uma plantação inteira de todas as plantas que existem na face da Terra. E todas no meu quarto.

O meu desejo mesmo era fazer uma estufa no meu quarto, já que, recentemente, havia decidido me tornar bióloga. Percebi pelo olhar dos meus pais que eles acharam a ideia absurda. Abafaram um sorriso e me disseram que eu teria todas as plantas que quisesse. Contudo, hoje, no meu aniversário, ganhei uma única plantinha. Não reclamei, é claro, pois sei que meus pais me presentearam de coração e, além, do mais, a Rosana é simplesmente linda!

Rosana foi o nome que dei para minha planta, até porque eu tenho essa mania peculiar de nomear tudo que é meu. Meu quarto recebeu Rosana como sua primeira hóspede. Prometi aos meus pais que cuidaria bem dela, não esquecendo de regar todos os dias e a expor ao sol por tempo suficiente. É claro que eu daria conta desse trabalho, afinal, estava treinando para o futuro em que seria bióloga.

Confesso que estranhei a primeira vez em que Rosana me mostrou os dentes. Nunca tive uma planta antes, pois moro em apartamento desde sempre, e anda cada vez mais raro uma parte verde na cidade, temo que construam condomínios até em cima das próprias pessoas futuramente. Julguei que Rosana estava feliz e encarei os fatos como um sorriso de agradecimento, afinal, eu estava cuidando direitinho dela. Não comentei nada com meus pais, pois não queria receber mais um riso abafado, eu seria bióloga e meu orgulho não me deixava dizer que não sabia que plantas também tinham dentes!

Mas a verdade é que Rosana e eu nos demos muito bem, como melhores amigas. Reservei um momento do meu dia, todos os dias, para garantir o sol e a água da minha plantinha de estimação. Eu sempre recebia um sorriso de agradecimento em troca e, a cada dia, os dentes de Rosana pareciam maiores e mais afiados.

Nós também tínhamos uma gatinha branca de estimação, peluda e com o miado dócil. Raramente Penélope incomodava alguém, vivia apenas estirada no sofá ou pela cama preguiçosamente. Comer e ronronar quando recebia carinho eram suas únicas distrações. Ganhamos Penélope da minha tia Annie Carmo, fruto do relacionamento da sua gatinha com um gato de rua.

Minha rotina dia após dia não mudava muito: eu estudava no período da manhã, chegava em casa na hora do almoço e cuidava da Rosana antes de começar a fazer a lição de casa, que tinha que estar pronta religiosamente antes do jantar.

Entretanto, certo dia minha vida foi modificada por um ato brutal e inesperado. Voltei da escola e me deparei com uma verdadeira carnificina em meu quarto. Havia sangue escarlate respingado pelas paredes, pelo piso, pela colcha rendada da minha cama. No canto direito do quarto, havia um emaranhado de pelos brancos e sedosos, como os de Penélope, mas estavam encharcados de sangue. Não parecia ser um gato, nem nada vivo, afinal, não havia cabeça, nem patas, apenas um aglomerado de pele dilacerada e pelos sujos de sangue. Gritei até me faltar ar, minhas pernas bambearam e minha visão escureceu.

Acordei no colo dos meus pais, em seu quarto, que disfarçavam o choro e me diziam que estava tudo bem. Ainda em choque, perguntei o que havia acontecido.

- Foi a Penélope, Lisa. Não sei o que aconteceu no seu quarto, mas achamos que algum outro animal invadiu a casa. Provavelmente aquela raposa encrenqueira que sempre ronda nosso muro... elas brigaram e... bem... Penélope nos deixou - enfim disse minha mãe.

Ouvir aquilo foi um baque. Aliás, presenciar toda aquela cena foi um baque. Devo ressaltar que minha infância foi diferente depois desse episódio. Até porque eu sabia. Sabia dos dentes de Rosana, sabia que havia algo a mais ali... só não imaginava que Rosana fosse tão diabólica.

E eu também vi, é claro. Observei o sangue escorrendo pelos dentes da planta naquela mesma noite, seu sorriso satisfeito...

Limpar meu quarto com todos os desinfetantes do mercado jamais apagariam a cena da minha mente, agora perturbada.

Percebi também meu mundo desabar depois deste dia.

A planta passou a sorrir para mim com os dentes cada vez mais afiados, porque ela também sabia. E não se importava. Comecei a ter medo de entrar no meu próprio quarto e a sofrer calada, aguentando o peso nas costas sozinha, pois não podia contar para os meus pais. Não sem que eles me achassem louca. Ou então uma criança assustada. Talvez até mesmo mentirosa.

De certa forma, garantir a água e o sol de Rosana também garantia sua confiança. Do seu modo, talvez a plantinha até gostasse da sua dona. Entretanto eu não podia imaginar o porquê do assassinato de Penélope. Fome, ciúmes, vingança? Como se as plantas fossem capazes de possuir tais sentimentos humanos!

Foi numa tarde de inverno que tudo ocorreu. Voltei da escola com as mãos congelando, havia esquecido minha luva em casa e o inverno castigava a todos naquele dia. Desci da van escolar enrolada em meu cachecol e abraçando algumas dezenas de casacos. Entrei em casa estranhando o silêncio nada aconchegante. Há essa hora, mamãe deveria estar terminando de preparar o almoço e papai brigando no celular com quem o importunasse nesse horário.

- Mãe? Pai? - chamei com a voz falha, já sentindo um nó formar-se na garganta e o coração acelerar.

Passei pela sala, pela cozinha e pelo corredor que levava aos quartos, todos vazios, praticamente correndo, tropeçando em metade da mobília e derrubando a outra metade que cruzava meu caminho. Quando abri a porta do meu quarto, vi o que mais temia: sangue e restos humanos escorrendo por todo lado, salpicados nas paredes, tingindo os pisos, pendurado na janela, sob a mobília, aglomerando-se em uma poça coagulada e aterrorizante no tapete.

Caí de joelhos, em prantos, soluçando, arfando, sentindo a razão de existir esvair-se de mim. Gritei em desespero por ajuda, por meus pais, por qualquer coisa que me fizesse acordar daquele pesadelo. Nada. Eu estava sozinha na cena de um crime brutal.

Corri para fora de casa, não antes de dar uma última olhada em Rosana, que me encarava com um sorriso sangrento e satisfeito.

Senti-me culpada. Culpada por querer a planta, culpada por não falar com meus pais, culpado por deixar a história se desenrolar nessa tragédia. E a cada passo desesperado para longe de casa a culpa e as lágrimas me invadiam, me corroíam e envenenavam cada parte do meu ser...

Taquicardia e outros sintomas do medoOnde histórias criam vida. Descubra agora