"A MENINA NA ESTAÇÃO"

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1896
Santa Marianna

George já se encontrava em estado de transe, sentindo seu corpo se fundir ao banco estofado da estação de trem quando, de repente, viu uma escova de cabelo de madeira deslizar pelo chão ao encontro do seu pé. Quando terminou de examinar o objeto, ergueu a cabeça e encontrou a dona da pequena escova, uma menina muito magra e aparentemente desajeitada, que acabou por derrubar todos os pertences da maleta que carregava (não que houvesse muita coisa para ser derrubada).

— Deixe-me ajudar com isso. — disse George, pondo-se de joelhos para pegar os objetos do chão. A menina aceitou a ajuda, não que fizesse diferença.

— É que ela está quebrada. — a criança comentou, no que mais parecia ser um sussurro, enquanto recolhia um pequeno retrato.

Ele a fitou com um olhar perplexo por alguns segundos e então perguntou: — Você está se referindo à sua bolsa?

— Sim. -— respondeu a garotinha, sem se dar ao trabalho de o olhar no rosto

Ambos já tinham quase terminado de recolher tudo quando ele ouviu uma voz irritantemente familiar se aproximando e se pôs de pé. Lá estava ela, o Diabo em pessoa. Na verdade, ele logo reconheceu que aquilo era uma afirmação muito cruel. Até onde sabia, o Diabo era só um monstro desalmado responsável por punir a escória da humanidade com tortura eterna. O coitado nunca fez nada ruim o bastante para ser comparado à impiedosa Sra. Peres. Algumas pessoas podem achar esse julgamento um tanto exagerado. Bem, essas pessoas não a viram no verão passado, um mês após a morte de Amélia, tentando empurrar sua filha do meio, Ana, para um casamento com George.

Era de conhecimento geral que ele havia optado por uma vida de solteiro para que pudesse cuidar da irmã mais nova, Amélia. A garota só mostrou sinais claros de sua deficiência intelectual aos 15 anos. A essa altura, seus pais, que a tiveram consideravelmente tarde, já estavam quase na casa dos sessenta. Por isso, George assumiu a responsabilidade por ela. Desde então, ocasionalmente se deparava com alguma mulher que enxergava sua decisão como um mero desafio, que poderia vencer e levá-lo como um prêmio. Mas Pietra Martins Peres passou de todos os limites, o corpo de Amélia nem havia esfriado quando aquela víbora e sua filha tentaram se aproximar. Só de lembrar delas sentia seu sangue ferver, mas ela estava próxima demais para que desse tempo de fugir. Talvez ela não o visse.

— Sr. Joel? Que bom vê-lo. — Aquela voz estridente! George estava disposto a abrir mão de algumas boas moedas para nunca mais ter que ouvir aquela voz.

— Sra. Peres, boa tarde.

— Quantas vezes terei de pedir para que me chame de Pietra?

Mais quinhentas. — George pensou — na verdade, nem isso seria suficiente. Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, outra mulher surgiu ao seu lado. Era alta, e a faixa de cabelos brancos que seguiam por aquele coque negro mostrava que ela tinha mais idade do que era apropriado perguntar a uma mulher.

— Sra. Peres, essa é a menina que pediu. — Ela apontou para a pequena criança com o braço e as duas continuaram conversando, enquanto George olhava de relance para a garotinha. Por um segundo, ele esqueceu da existência dela.

Bom, seja lá qual fosse a relação daquela pobre criança com aquela mulher odiosa, só podia sentir pena. Ele aproveitou a conversa das duas mulheres para começar a se afastar o máximo possível, iria para algum canto isolado e esperaria o carro que pediu ir buscá-lo.

Enquanto se afastava, ele se virou uma última vez para se despedir da menina, que, até onde sabia, era a única ali que merecia um adeus. Mas viu uma cena de cortar o coração, até mesmo de alguém como ele, que fora chamado de frio e insensível mais vezes do que gostaria de admitir. A menina estava tentando conter as lágrimas e fingir que não estava em desespero. Algo que aquele monstro e a senhora à sua frente falaram estilhaçou o coração daquela criança. Então George, pela primeira vez desde que conheceu a Sra. Peres, tentou prestar atenção no que ela estava dizendo.

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