02: dificuldades.

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A heroína sentia as mãos quentes, ardendo ao puxar o fio tenso do ioiô; a linha escorregava entre seus dedos e ela tinha a nítida sensação de que suas palmas estavam em carne viva. A estrutura da ponte ruiu outra vez. Mais destroços caíram ao seu lado. Os gritos se tornaram mais altos.

Eu não consigo mais segurar.

A linha retesou, puxou e quase sumiu de suas mãos. Ladybug segurou com força, escorregando do barranco onde estava sentada, puxando o ônibus de volta para a ponte. Os músculos doíam e a voz parecia craquelada ao sair da garganta em um grito agonizante.

— Rena! Bee! Por favor, me ajudem. — Ela berrava pela décima vez. A ajuda não viria. Os passageiros foram condenados. Ela foi condenada ao fracasso.

Eu não vou conseguir segurar.

O grito que saiu de sua boca ecoou pelo apartamento inteiro. Quando se sentou na cama, tremia da cabeça aos pés. Estava suada, pegajosa, e suas roupas grudam na pele quente. Marinette passou a mão pelos cabelos molhados e suspirou, tensa, sentindo tudo dentro dela fervendo e chacoalhando. As palmas doíam tanto que latejavam; sua velha dor fantasma estava no auge da pungência, dando a ela algo para se concentrar além do pesadelo. Os primeiros minutos eram os de adaptação. Marinette olhava para as paredes, tentando se convencer de que estava segura e em casa, e depois tentava suportar a dor e classificá-la. Naquela manhã, ela daria um oito, porque estava difícil até mesmo de mexer os dedos. 

Sempre naquele período do ano, suas noites se tornavam mais complicadas; como uma coisa psíquica ou um lembrete do universo de que a data estava próxima, e de que ela nunca poderia se eximir da responsabilidade pelo o que aconteceu. A verdade era uma, mesmo que sua mente se desligasse da heroína como forma de sobrevivência: ela havia soltado a linha. Por um motivo ou outro, ela foi a responsável por soltar o fio.

Marinette se levantou rastejando. O dia mal havia começado e já se sentia exausta; não havia ânimo algum para realizar suas tarefas, mas permanecer petrificada em sua cama torna tudo pior. Exaurir sua mente e seu corpo, manter-se ocupada o máximo de tempo possível, era o que mantinha todo o resto em segundo plano; a dor, os fantasmas e até ela mesma. Limpar, desenhar e se exercitar dentro dos limites de seu apartamento mediano no subúrbio de Paris eram as únicas coisas que ainda a mantinham parcialmente sã. Se não fosse sua proatividade forçada, ela continuaria definhando nos cantos dia após dia. E, dentro de seu âmago, era isso o que queria.

No caminho para a cozinha, passou pela sala primeiro e apertou a caixa eletrônica de mensagens, deixando rolar a voz aflita de sua mãe nas gravações; aquilo doía, mas todas as manhãs repetia o ritual. Era quase natural. Aquilo arranhava seu peito, escancarava e abria feridas, mas precisava. Precisava ao menos ouvir a sua mãe.

"— Oi, querida. É a mamãe. Outra vez. Seu pai e eu queremos saber se está tudo bem. A mesma coisa de sempre: se está comendo bem, tomando suas vitaminas e se tem comido um pãozinho gostoso de vez em quando…"

A risada de Sabine no telefone a fez sorrir; era um sorriso triste, singelo, que morreu em seu rosto tão rápido quanto surgiu e deixou um vazio em seu peito. Sentia saudade do riso de sua mãe. De sua espontaneidade. A casa de seus pais era um santuário imaculado do qual sentia falta pela alegria de sua mãe e pela presença sempre leve e protetora de seu pai. Marinette deixou a água da chaleira transbordar ao lembrar-se do pai. Um choro sufocou dentro dela.

"—... Só estamos com saudade, querida. Sabemos que é um período bem… difícil, mas vamos passar por isso outra vez. Venha nos ver quando estiver pronta, ok? Amamos você, docinho. "

O bip do final da mensagem veio com o suspiro aliviado dela. Acabou. Ela poderia retornar para o silêncio mórbido de seu apartamento, mesmo que a tristeza cravada no timbre melancólico de sua mãe ressoasse em seus ouvidos. Sua ausência machuca ambos, pai e mãe. Sentia-se ingrata e cruel quando os afastava mais do que o seu novo normal. Mesmo assim, o fazia. Fazia porque eles não mereciam o desgaste; todo o sofrimento e o segredo eram seus problemas, e condenar os pais a olharem para os familiares das vítimas sabendo quem foi a responsável, que a filha deles era a incompetente, era doloroso demais. Jamais faria algo assim.

Cicatrizes de batalhaOnde histórias criam vida. Descubra agora