6
A escuridão nunca me assustou, enquanto algumas pessoas tinham seus receios em andar durante a noite eu gostava de sair e apreciar a lua em todas as suas fases, no entanto, aquele lugar estava longe de ser como a noite. Por algumas vezes tive que desviar os olhos de esqueletos que apareciam jogados no meio da caminho com aspecto deploráveis e medonhos. A última coisa que eu queria era imaginar meu próprio corpo apodrecendo como esses pobres infelizes.
—Não olhe Sophie, só não olhe...
Se não fosse pela minha estranha fonte de luz, algo que ainda me intrigava, as chances de eu ter cedido a loucura e o desespero naquele lugar eram grandes, mas por algum motivo, quanto mais tempo eu andava com ela mais forte era o misto de bons sentimentos que me davam forças para continuar em frente, quase como se eu estivesse sendo guiada a algo maior, algo que eu implorava ser uma saída daquele lugar.
Por longos minutos, ou horas, eu já tinha perdido a noção de tempo, continuei andando pelos caminhos onde a luz se tornava mais e mais intensa até que em um determinado ponto seu brilho se tornou tão forte que fui obrigada a fechar os olhos, porém, sem mais nem menos, toda aquela claridade sumiu como a chama de uma vela exposta a uma rajada de vento.
—Não, não, não!
Sacudi o colar por várias e várias vezes na esperança de acendê-lo mas obviamente não adiantou. Dessa vez eu estava à mercê da escuridão total, tão espessa e profunda que podia senti-la.
—Tudo bem...
Sussurrei ouvindo os ecos da minha voz se distanciaram pelas paredes.
—Está tudo bem...
—Então a mentira lhe conforta?
Sentindo todos os pelos do meu corpo se arrepiarem dei um salto para trás batendo as costas na parede. Tinha ouvido uma voz, uma voz em meio a escuridão. Por alguns segundos tentei abrir meus olhos o máximo que conseguia na esperança de enxergar alguma coisa, mas sem resultados simplesmente os fechei torcendo para aquilo não passar de obra da minha mente perturbada.
—Você está ficando louca...
—Essa sempre é a melhor das desculpas, loucura, loucura, loucura! Sempre a loucura.
Dessa vez eu tinha certeza. Não era coisa da minha imaginação.
—Quem está aí?!
—Quem? Sim, essa sim é uma boa pergunta...
Me encolhi o máximo que pude, meu coração batia freneticamente no peito enquanto a lembrança das histórias do fosso inundavam minha memória trazendo os horrores que só elas possuíam.
O monstro...
Levei as mãos até a boca para impedir um grito.
As histórias eram reais?!
—Já faz tanto tempo que já nem sei mais...
Todo meu corpo havia petrificado. Não conseguia me mexer, estava assustada demais com aquela voz de timbre amargurado e enraivecido.
—Do que eles me chamam agora? Foram tantos os nomes...
Sem que eu esperasse, o silêncio voltou a preencher meus ouvidos poucos segundos antes de algo frio e pegajoso apertar meu pescoço com força me deixando sem ar.
—Me diga, por que a jogaram aqui? A morte nunca lhes agrada por si só. Sim, eu sei, sei do gosto que vocês humanos sentem pelo sofrimento, a satisfação em condenar e ditar o fim, e como se não bastasse ainda jogam uns aos outros nas entranhas dessa terra, um destino pior do que a própria morte, é o que eles dizem, não é mesmo?
Meu desespero só aumentava.
—E eu entendo, entendo bem! Vi vários caírem aqui mas você foi a única que chegou tão longe, muito longe, os outros gritavam, batiam com a cabeça nas paredes ou choravam até tudo voltar a ser silencioso, mas você não, interessante, muito interessante...
Quando achei que ia perder todos os sentidos aquele aperto sumiu fazendo com que eu puxasse longas lufadas de ar me engasgando.
—Garota estupida, é tão difícil assim aceitar a morte?
Lágrimas e lágrimas caíam do meu rosto, quanto mais escutava aquela voz mais eu chorava, mas não era tristeza ou medo.
—Estupida, todos vocês, um bando de estupidos, ignorantes e mesquinhos.
—Você está certo! — em um impulso de raiva por tudo o que estava acontecendo me coloquei de pé encarando o vazio à minha frente — Absolutamente certo! Mas isso não significa nada! Nada! Mesmo que alguém importante tenha me jogado aqui, que ninguém tenha acreditado em mim eu sei que fiz minha parte lá em cima com pessoas que estavam presas em uma escuridão muito pior do que essa!
Me lembrei do abraço de Maria e seu irmão, principalmente do sorriso sincero de ambos por um ferimento que muitos consideravam incurável ter cicatrizado. Quantas outras pessoas eu não havia ajudado da mesma maneira? Quantos não levantaram de suas camas e puderam levar suas vidas depois de chorarem na minha frente dizendo que não havia mais jeito? Quantas vezes não ajudei a trazer esperança para quem havia desistido? E mesmo com aquele maldito pronunciamento eu sabia que não ia conseguir ficar parada vendo alguém que precisava de ajuda, da minha ajuda. De um jeito ou de outro meu destino acabaria sendo o mesmo e, por algum motivo, saber disso afastou os sentimentos ruins que eu estava sentindo.
—Eu fiz a minha parte e ajudei quem consegui ajudar! — fiz uma pausa — Meu único arrependimento porém foi não ter levado uma maçã a um garotinho que vai passar por algo muito difícil — a imagem de Vini me oferecendo seu pedaço de pão arrancou um sorriso triste dos meus lábios — Então pode zombar o quanto quiser de mim, porque no final tudo o que eu fiz valeu a pena, não me arrependo de nada, mesmo que no final eu tenha sido condenada a passar os últimos instantes da minha vida ao lado de um monstro.
Depois de dizer tudo o que eu queria, colocar para fora o que me consumia deixando meu corpo incrivelmente leve, sem medos ou receios, um longo silêncio se formou. No fundo me preparei para o mesmo aperto em meu pescoço porém, para meu espanto, em meio a escuridão um par de olhos surgiu com um brilho tão prateado quanto a própria lua. Por longos segundos me peguei observando aquela imagem surreal quando levei um susto ao ouvir a mesma voz de antes ecoar pelas paredes.
—Seu altruísmo foi o que te condenou.
Continuei observando aquele par de olhos até enxergar algo além da sua cor única e mística. Havia ali uma tristeza profunda que, de alguma forma, era quase humana.
—E do que vale um corpo livre se a alma estiver acorrentada?
As palavras saltaram da minha boca sem que eu me desse conta espantando a mim e ao par de olhos pouco antes de um som alto machucar meus ouvidos.
—Alma! ALMA! Não fale como se soubesse o que é isso! Maldita maldição! MALDITA MALDIÇÃO!
Os gritos furiosos ecoaram fazendo as paredes tremerem. Em um gesto de proteção me abaixei cobrindo a cabeça até que tudo se acalmasse voltando a ser novamente o silêncio de antes. Os olhos prateados haviam sumido. A criatura não estava mais ali.
Aliviada me deixei cair no chão enquanto respirava fundo.
Eu havia estado frente a frente com o monstro das histórias do fosso e ainda continuava viva.
—Pelos céus...
Em misto de alegria e horror deixei as lágrimas inundarem meu rosto enquanto um riso incrédulo escapava dos meus lábios.
Ele é real...
Conseguia ouvir meu coração bater forte lembrando dos gritos furiosos de momentos atrás.
Ele é realmente real...
A imagem de um olhar prateado surgia na minha memória, tão vazios e tristes que foram capazes de silenciar meus sentimentos confusos.
Além de muito infeliz...
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Corpo e alma, a pior das maldições (Projeto em fase de criação)
Fantasy"O monstro do poço" foi assim que Sophie o conheceu através das terríveis histórias que passaram de geração em geração, um lembrete a quem fosse esperto o suficiente para ouvir e acatar as ordens de quem detinha o poder, no entanto, quando ela mesma...