Ataque

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Subimos uma longa escadaria até o andar superior, esse se expandia por mais corredores que levavam a outros lances de escadas criando inúmeras torres que formavam o castelo. Gart se limitou apenas ao segundo andar onde, separados pela baulastrada, era possível ver o térreo onde a massa de pessoas e tecidos brilhantes rodopiavam de um lado para o outro, indo e vindo em movimentos ordenados ao som da música. Fiquei observando a multidão imaginando que, em algum lugar do salão, Eylef dançava com algumas mulheres.

—Você me parece preocupada.

A voz de Gart me trouxe de volta. Deixando a máscara sobre uma mesa proxima ele se aproximou para observar a multidão.

—Ainda lembrando do meu vexame.

—Nao pense muito nisso.

—Então você concorda que foi um espetáculo de horrores.

Gart sorriu.

—Não são todos que conseguem acompanhar a valsa, para ser sincero, me surpreende que seu amigo saiba tão bem os passos. 

Continuei a observar Eylef percebendo que eu não sabia nada sobre ele a não ser o que ele escondia por de trás da mascara e as faixas em volta do corpo.

—Você parece bem novo para ser um rei — decidi mudar de assunto — Seria muita intromissão da minha parte perguntar sobre seus pais?

Os olhos de Gart se desviaram do salão para o céu azul além dos vitrais.

—Meu pai foi morto em combate durante a grande guerra, e minha mãe, bom, dado a profunda tristeza ela acabou definhando aos poucos.

—Sinto muito...

—Está tudo bem, não posso reclamar de ter tido uma infância difícil, meus pais sempre fizeram questão de que meu irmão e eu desfrutassemos dessa época de nossas vidas, mesmo que ainda tivéssemos mais responsabilidades do que nossos amigos.

—Por falor no seu irmão, onde ele está?

—Provavelmente jogando gracejos para cima das convidadas.

Nós dois rimos. Lá embaixo a multidão começava a se dispersar abrindo espaço no centro do salão.

—A peça já vai começar.

De repente cortinas gigantes desceram dos grandes vitrais escurecendo boa parte do salão, no entanto, no centro da grande roda, um feiche de luz descia de algum lugar do topo do castelo banhando a escuridão com seu brilho dourado.

—O que é essa peça?

Lá embaixo alguns homens se aproximaram, despejaram punhados e mais punhados de areia até que uma pequena montanha se formasse. Eu observava atenta, ao meu lado, Gart fazia o mesmo.

—As areias do tempo sempre são trazidas no começo de cada verão ao palácio.

Depois de terminarem, os homens lá em baixo se afastaram. Tudo estava em silêncio.

—Os ventos do norte entram pela claraboia da mais alta torre...

Enquanto falava, senti o toque gelado de uma corrente de ar.

—E então a mágia acontece.

Todos estavam ansiosos, os olhares atentos ao monte de areia que parecia brilhar como ouro sob a luz do sol. De repente, um pequeno redemoinho surgiu agitando os grãos dourados quando, por fim, toda a área foi levada na corrente de vento criando formas que pareciam dançar por todo o salão. Meus olhos encaravam a cena fascinados. Mulheres com longos vestidos bailavam ao alto da cabeça dos convidados junto de grandes pássaros que, em seguida, se transformaram em lobos graciosos.

—As areias do tempo vêm da parte mais isolada do deserto das almas, são capazes de mostrar fargmentos do passado e, se tivermos sorte, do futuro.

A voz de Gart chegava aos meus ouvidos e com muito esforço desviei meus olhos do salão para ele.

—Futuro?

Voltei a encarar as figuras flutuantes.

—Isso é incrível...

As formas dançavam, se desfaziam e se reuniam em novas figuras. Por um tempo ficaram em animais fantásticos, depois, em um ritmo mais de vagar as areias se juntaram criando um exército. Todos observavam atentos os pequenos soldados empunharem suas armas, no alto das inumeras cabeças voava uma figura, um homem com dois pares de asas onde as longas garras apontavam para os soldados. Em um único movimento a figura mergulhou. Todos no campo de batalha foram destruidos. Os convidados olhavam a cena com horror, as expressões em um misto de raiva e tristeza.

—Quem é aquele Gart?

Perguntei com os olhos fixos na figura que parecia observar a multidão.

—Nós o chamamos de calamidade.

Até mesmo o rei ao meu lado parecia furioso, das suas palavras conseguia sentir a raiva que emergia de algum lugar do seu coração.

—Foi um soldado de guerra, responsável por destruir impérios sob ordens de um rei cruel, suas mãos possuem o sangue de muitos, inclusive o dos meus pais.

A figura continuou flutuando, sozinha, os olhos vazios buscando ao arredor até que pararam sobre mim. As garras haviam se retraído. As asas se agitavam suavemente no ar. Mesmo sem expressões o rosto de areia parecia perturbado. Havia algo naqueles olhos que então percebi não serem tão vazios como aparentavam.

—Sophie...

Senti a mão de Gart sob meu ombro. A figura estava perto. Muito perto. Flutuava com as quatro asas abertas. Seus olhos não desviavam dos meus. Pareciam querer dizer algo, mas sua figura era apenas areia.

—Sophie se afaste.

Os olhos estavam fixos aos meus. Havia algo ali, algo que parecia chamar por mim. Um pedido que parecia ecoar pelas areias, vindo de um lugar muito distante, trazido pelo próprio tempo.

"Socorro..."

Senti algo me puxar para trás no mesmo instante que uma lâmina voou em minha direção.

—Cuidado!

Senti o impacto do meu corpo sobre o de Gart enquanto a multidão gritava. Ao meu lado, uma lança estava cravada no mármore branco da parede, a grande aste de madeira ostentava a imagem de figuras mas não tive tempo de prestar muita atenção. Minhas mãos agiram sozinha enquanto me colocava de pé.

O que aconteceu?!

Olhei para o salão onde algumas pessoas brandiam espadas curvas decepando os convidados que viam pela frente.

—Sophie venha!

Meu corpo havia travado. Havia sangue jorrando pelas paredes, imensas poças carmesim que brilhavam na luz que desciam pelo teto.

Eylef!

Senti Gart me puxar para longe daquela visão em direção aos corredores. Ao nosso redor vários soldados marchavam.

—Espere! Ele ainda está lá!

Mesmo me debatendo não conseguia me livrar das mãos de Gart.

—Eylef!

As portas começaram a ser fechadas diante dos meus olhos. Do outro lado, tudo o que restava era visão da imagem de areia que desmanchava aos poucos sobre os corpos lá em baixo.

—Eylef!!



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⏰ Última atualização: Jan 16 ⏰

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Corpo e alma, a pior das maldições (Projeto em fase de criação)Onde histórias criam vida. Descubra agora