Cinco anos
A casa era enorme.
Não tão grande quanto a nossa casa no Canadá, mas grande o suficiente para se perder nela e não se encontrar mais. Mas ao contrário da nossa casa, essa parecia velha e desgastada. Plantas subiam pelas os tijolos do lado de fora e eu conseguia contar nos dedos as rachaduras das escadas até o teto. As janelas estavam tão sujas que não dava para ver através delas, nem com todo o Sol que estava fazendo.
Escutei barulho do porta malas se fechando enquanto o empregado do papai que nos trouxe até aqui tira minhas malas.
Senti as mãos finas de mamãe segurando em meus ombros magros. Ela dizia que quando eu crescesse eu seria um garoto grande e forte, e poderia brincar com as outras crianças como todos os outros. Mas enquanto isso não acontecia eu teria que ficar aqui, nessa casa grande e vazia.
Ela disse que essa casa era perfeita para minha condição, bem longe da cidade grande muito barulhenta para os meus ouvidos, e de todas as pessoas que não entendiam que eu era um menino frágil.
Odiava essa palavra.
Frágil.
Uma vez escutei papai falar com um dos seus homens que alguém frágil era alguém fraco, e eu não queria ser fraco.
Também não queria morar na França.
Gostava do Canadá e das pessoas de lá, especialmente dos nossos empregados que pareciam ser as únicas pessoas a não me olhar como se eu fosse uma aberração. Mas mamãe disse que eu tinha que vir para cá por um tempo, que iria ser melhor para mim.
Papai também disse isso, mas eu não sentia tanta honestidade e gentileza em sua voz como na da mamãe.
Para ser honesto, não sentia muita coisa na voz dele sempre que falava comigo e não me olhava nos olhos. Os olhos azuis que puxei dele.
— Gostou? – a voz aveludada de mamãe chega até mim e tenho que dobrar meu pescoço para trás para olhar para seu rosto.
Mamãe era uma mulher bonita, cabelos escuros e longos, lábios carnudos e olhos grandes e castanhos. Ela era bem alta em comparação as outras mulheres que conheci, e todo mundo dizia que ela foi uma das melhores e mais bonitas modelos dos anos 90. Eu não discordava disso.
Volto a olhar para a casa escura a nossa frente e percebo que tinha uma mulher com roupas de empregada na porta, me dando uma visão do que no esperaria por dentro, e a única coisa que pude ver foi um chão de mármore branco.
Eu não tinha gostado da casa, se dependesse de mim faríamos a volta para o aeroporto e voltaríamos para a nossa casa, onde eu tinha um quarto cheio de pôsteres de jogos que eu gosto e as paredes azuis.
Mas eu não queria decepcionar mamãe, então apenas acenei a cabeça forçando um sorriso em meu rosto.
Ela devolveu o sorriso para mim e apertou meus ombros antes de começar a andar comigo até a porta.
Cada passo que dávamos eu sentia algo ruim no meu peito, talvez fosse uma saudade prematura de casa, talvez eu só não quisesse estar ali.
— Vamos trazer o resto de suas coisas na próxima semana, e vou mandar um designer de interiores para você deixar a casa do jeito que você quiser – mamãe parecia ansiosa com a ideia, mas tudo aquilo parecia um pesadelo, para que transformar a casa do jeito que eu queria se eu não ficaria muito ali?
Passamos pela a porta e um frio mórbido me abraçou, me fazendo agarrar as pernas da mamãe. Tudo era branco aqui, tudo sem vida. O chão. O teto. As paredes. As escadas, até as luminárias. Havia poucos imóveis e a maioria também era de madeira branca.
Na nossa casa no Canadá pelo menos tinha os quadros que mamãe tanto ama, que traziam cor para o lugar.
Mas não tinha nada aqui além de vazio.
Escutei mamãe resmungar algo para a empregada, mas não consegui captar o que suas palavras significavam. O médico disse que era normal eu não conseguir escutar direito às vezes, ou falar. Me irritava um pouco, também sabia que irritava papai.
— Por aqui, mon coeur – mamãe me chamou pegando em minha mão e começando a me guiar pela a casa, que quanto mais eu olhava, mais assustadora ficava.
Entramos em um cômodo que deveria ser a sala. Lençóis brancos forravam todos os móveis, e alguns deles eu reconheci como sofás e poltronas. Parecia uma casa mal assombrada, e esse pensamento me fez aperta mais a mão da minha mãe que continuava conversando com a empregada.
— Quero móveis novos... – a única coisa que consegui entender das várias palavras que minha mãe disparava para a mulher que apenas acenava com a cabeça. Não acho que eu conseguiria memorizar tantas palavras tão rapidamente. – Também quero que se livre de todos os espelhos.
Espelhos.
Mamãe odiava eles. Também não gostava que eu ficasse perto de um, ela achava que eu não entendia porque ela me tirava de perto de tudo que dava reflexo, ela até mesmo tampava meus olhos quando íamos entrar no carro. Mas eu sabia. Descobri faz pouco tempo o motivo de não termos espelhos em casa, ou piscina.
Soltei a mão de mamãe enquanto ela continuava mandando ordens para a mulher.
A casa me assustava, mas tinha algo nela que gritava por mim, talvez o senso de curiosidade e de aventura, pois nunca estive em muitos lugares além de casa e do hospital.
Passei as minhas mãos pelos lençóis enquanto andava sem rumo pela a sala, um pé na frente do outro.
A voz da mãe fica mais baixa quanto mais eu vou afastando dela, algo me puxava e me atraia para uma porta entreaberta que tinha ao lado da janela. Um vento frio vinha de lá e eu não conseguia parar as minhas pernas enquanto seguia por ali.
Parei na frente da madeira branca e espiei pela a frente, vendo um salão grande a minha frente, toda a luz que o resto da casa não tinha estava concentrado ali, o que explicava o vento. Empurrei levemente a porta e entrei no cômodo, que só olhando ao redor para perceber o que era.
Um estúdio de dança, já tinha visto um em um filme que assisti com mamãe.
O chão de madeira polida e as barras de ballet estavam por todo canto.
Assim como espelhos.
Vários espelhos.
Um aglomerado de reflexos estavam ao meu redor agora, refletindo uma sala grande e bem iluminada pelo o Sol da tarde do lado de fora, e no meio da salas tinha um garotinho. Suas roupas engomadas, caras e bem passadas não combinavam com seus sapatos sujos de tanto tropeçar. Sua pele pálida o dava uma aparência doente e seus olhos azuis – quase cinzas – não ajudavam a dar uma impressão vivida.
E no lábio superior tinha uma fissura, uma fenda, chamada de fenda palatina.
Esse garotinho era eu.
Esse era o motivo de eu estar me mudando para essa casa tão longe de todos, meus pais não precisaram me contar para eu entender o motivo.
Eu nasci com lábio leporino. Uma mal formação congênita no lábio que o fazia ter uma abertura na parte superior da boca até o nariz.
Mamãe dizia que eu era especial porque isso não acontecia com muitas crianças, e mesmo assim eu era diferente das que nasceram com isso, pois a maioria delas fizeram a cirurgia com três meses assim como os médicos indicam, mas eu não pude fazer. Porque sou fraco. Nasci fraco. O doutor disse que eu não tinha glóbulos vermelhos suficientes e que eu não aguentaria a cirurgia ou a recuperação, e teria que esperar mais alguns anos para poder fazer a cirurgia e ficar “normal”, pelo menos, foi desse jeito que papai disse uma vez quando pensou que eu não estava escutando.
Por isso eles me mandaram para cá, para eu ir ficando mais forte e mais resistente para conseguir fazer a cirurgia.
Mas eu não queria ficar longe de todos apenas para poder fazer a cirurgia.
Eu não entendia porque simplesmente não podia ser assim. Eu não gostava disso, mas mamãe sempre disse que eu era o seu menino especial, e não queria deixar de ser se consertasse a minha boca.
Mas será se ela me amaria mais se eu fosse normal?
Uma mão puxou o meu braço magro e pequeno e solucei de susto.
O rosto retorcido de medo e indignação de mamãe aparece para mim, ela está agachada na minha frente agarrando meus dois braços com força.
— O que eu já falei sobre olhar para os espelhos? – ela falou como meu pai falava comigo, com autoridade e um pouco de raiva.
As lágrimas encheram meus olhos no pensamento de mamãe estar com raiva de mim, ou pior, estar parecida com papai.
— O que eu disse sobre isso? – ela repete esperando eu responder.
— E-Eu... Eu não p-posso olhar para eles – forcei a minha garganta a produzir as palavras, mas era difícil para mim, o médico também disse que isso era normal, mas papai disse que eu tinha aprender a falar igual as outras crianças.
— Exatamente!
Ela se levantou ainda segurando meu braço e começou a me arrastar para fora da sala e gritar mais coisas para alguem, eu ainda não entendia o que ela estava dizendo.
Olhei para trás e vi a imagem de um garotinho sendo arrastado por uma mulher bonita, que agora tinha expressões malvadas, como das outras mulheres que eu já tinha visto.
Deixei mamãe brava. E se ela quiser me manter nesse lugar por mais tempo por isso?
— É para esse quarto ficar fechado permanentemente até retirar todos os espelhos!
Mais ordens foram atiradas enquanto mamãe fechava a porta atrás de nós.
Mas não saia da minha cabeça a visão daquele garotinho com o lábio deformado. E como ele parecia triste em não poder ser daquele jeito.
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Lords of Hell - Underwater
Fiksi RemajaNão reagir. Essa era a minha regra, meu lema para sobreviver ao ensino médio e todo o resto. Não reaja, não lute. Se curve e aceite. Era o que eu seguia, até um dia não seguir mais. Tudo por causa dele. Haden LeBlanc foi uma maldição jogada em mi...