A Ordem Parasita

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— Não, não, não — ouço barulhos vindos lá debaixo, e levanto num sobressalto.

Desço as escadas praticamente voando, e nem me importando com o fato de eu ainda estar de pijama. Para a minha surpresa, o salão estava vazio, isto é, de clientes. Homens de roupas pretas entravam e saíam carregando móveis da cozinha e do restaurante. Franzo a sobrancelha, me perguntando se eu estava enxergando direito. Talvez fosse uma alucinação provocada pelo sono.

— Por favor, não pode estender o prazo até amanhã? O movimento foi fraco nos últimos dias — tio Ho tentava argumentar com um homem de óculos escuros. A julgar pelo porte altivo do homem, e pelo fato de não estar fazendo nada, devia estar no comando de seja lá o que seja isso.

— Quem dera eu pudesse te ajudar, amigo, mas já passou muito tempo. O chefe não gosta de esperar. — ele responde, anotando coisas numa prancheta.

Percebo que ele fazia contagem dos itens que eram levados para fora do restaurante. Ando em passos pesados até aquele brutamonte.

— Com licença?! — chamo a atenção dos homens.

— Ah, Pucca... Já acordou?! Por que não fica no seu quarto? Nós cuidamos disso... — meu tio tenta me impedir.

— O que está acontecendo aqui? - cruzo os braços para o homem de óculos escuros — Sabia que esse restaurante é propriedade dos meus tios? Até onde eu sei foram eles que construíram antes mesmo de eu nascer. Eu cresci aqui, conheço a história desse lugar então você não pode chegar aqui e...

— Mas que gracinha — o cara me interrompe como se tivesse ouvido nada do que eu disse — Ho, não havia me dito que tinha uma filha.

— Ele é meu tio! — ergo o tom de voz, já sem paciência — O que você pensa que está fazendo aqui?

— Escuta boneca, seu tio deve a nós a taxa de manutenção de propriedade. — ele tira um papel da prancheta e me estende.

Permaneço de braços cruzados esperando uma resposta concreta. Um pedaço de papel não valia de nada para mim.

— Que conversa é essa? Ficou maluco? Devolva as nossas coisas...

— Pucca, querida, por favor, será que podemos conversar? — tio Ho me chama para a cozinha.

O homem continua a sorrir para mim, como se eu fosse algum bichinho que estava ali para entretê-lo. Não gosto do jeito que ele me olha, e nem da suposta autoridade que ele achava que tinha sobre este lugar. Esse é nosso restaurante, nossa casa.

— Tio, o que estão fazendo? Quem são essas pessoas? Do que ele estava falando? Que taxa maluca é essa? — despejo uma enxurrada de perguntas de uma vez.

— Calma, eu sei que é difícil assimilar, mas muita coisa mudou enquanto esteve fora — ele tenta me explicar — Queremos que saiba que tentamos de tudo para que não chegasse a esse ponto, mas aparentemente querem tudo de nós.

— O que eles querem? Por que está deixando? Onde estavam os ninjas dessa cidade? Cadê o Ssoso e o mestre Chang?

— Ssoso foi em uma jornada de peregrinação para se tornar um Shaolin, e o mestre Chang faleceu ano passado.

— O que? Por que não me contaram? A Ching deve estar arrasada! — penso em minha velha amiga, eu com certeza deveria colocar a vista a casa dela como prioridade.

Suspiro sentindo minha vontade de lutar se esvaindo. Era óbvio porquê não me contaram, para evitar a reação que eu estava tendo agora. Compreendo totalmente, e por isso me permito alguns segundos de silêncio para digerir a notícia. Engulo em seco e torno a perguntar:

— Tio, o que é isso? Estamos sendo despejados?

— Não, ainda não, Dumpling e Linguini foram tentar negociar um empréstimo. Acontece que o restaurante não vai bem desde que esses caras chegaram. 

— Quem são eles? 

— Se autodenominam "Mogwai Dang", são forasteiros que nos salvaram de um desastre. Há alguns anos atrás houve um tremor causado pelo vulcão, eles disseram que conseguiram impedir a erupção com algum tipo de magia, não que alguém tenha de fato acreditado nisso, mas ajudaram e reconstruir a cidade. Nós devíamos ter te contado mas não queríamos preocupá-la.

— Minha nossa — era muito para assimilar, a vila quase foi destruída na minha ausência.

— Eles ficaram aqui, aparentemente eram uma gangue de eremitas buscando asilo, mas então eles começaram a achar que a população devia algum tipo de pagamento a eles. Juntamos quantias de todo mundo e entregamos para eles como forma de agradecimento, mas eles ainda queriam mais. Nos recusamos várias vezes, tentamos lutar mas eles chamaram reforços. Não querem sair, querem apenas ficar aqui e nos controlar. Quem não paga perde algo que ama, ou algo terrível acontece. Se não pagarmos os impostos atrasados podemos perder o restaurante.

— Perder o próprio restaurante? — a frase soava absurda em todos os níveis.

— Sim, eles deveriam vir só no final do mês mas disseram que alguém aqui violou o toque de recolher.

Aquilo só podia ser sacanagem. Estranhei o fato de não a ver ninguém nas ruas quando cheguei, mas até então não vi nada suspeito. Toque de recolher? Francamente.

— E onde estão os guerreiros que deveriam proteger a vila?

— Quem?

— Você sabe bem quem, tio. — cruzo os braços.

— Ah, melhor deixá-los fora disso — ele responde rapidamente — Eles até poderiam ter tentado, mas como eu disse é inútil, os Mogwai tem muitos soldados.

— Eu vou dar um jeito neles.

— Não, Pucca, é um perigoso demais!

— Fica tranquilo, eu dou conta.

— Eles tem armas!

— Bom, nesse caso, eu vou atrás dos ninjas que costumavam proteger a vila Sooga. — repito.

— Tem certeza?

— Sim, eles vão atender, ele me deve essa. — digo confiante, mas eu não estava. Ele não me devia nada.

Ainda assim eu não podia ficar parada sem fazer nada. Deixei a cidade e passei a adolescência inteira longe da minha família e amigos, longe de casa. Meus tios vinham me visitar regularmente mas nunca podiam ficar muito. Após o fim do tratamento eu pude ir embora, mas resolvi aproveitar a oportunidade de fazer faculdade assim que ela surgiu.

Meu retorno a vila Sooga veio com a promessa de dias melhores e o começo de uma nova carreira, afinal meus tios sempre incentivaram que eu seguisse meus objetivos. Amo este lugar e quero continuar o legado pelo qual esta vila se tornou famosa. Não foi apenas pelas academias de treinamento ninja, clãs ou paisagens, mas pelo delicioso macarrão criado pelos chefs mais talentosos que tive o prazer de conhecer.

Não vou deixar que tirem isso de mim, já perdi muito por me tornar refém dos meus próprios sentimentos. Agora voltei mais confiante, mais eu mesma. Estou em meu perfeito juízo e o momento não poderia ser mais apropriado. Sou uma adulta agora, e vou honrar minhas origens. Eu vou livrar a vila desses idiotas para sempre, nem que eu tenha que enfrentá-los sozinha. Mas primeiro, não custava tentar reunir forças para a tarefa. Felizmente, já sabia onde começar a procurar.

Corações Não MentemOnde histórias criam vida. Descubra agora