2. O caruru

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Não vou mentir, estava muito empolgada. Não somente pela comida, porque amo comida de dendê, mas pelo clima do ambiente em si, que estava muito agradável e alegre, me lembrando um pouco da infância e das festas no terreiro.

Quando chegamos lá, já havia uma quantidade razoável de pessoas na porta, mas havia muita criança e a maioria correndo pela rua despreocupada, como tem que ser nessa idade mesmo. O Guilherme era conhecido da dona da casa, a dona Adalgisa, que foi nos cumprimentar assim que descemos do carro, disse que não demoraria de começar, pois apenas estava esperando seu filho chegar, com os fardos de refrigerante. O caruru estava marcado para às 18 horas, e chegamos com trinta minutos de antecedência, ficamos no lado de fora da casa conversando amenidades, quando primeiro um carro chegou com várias mulheres vestidas de branco, turbantes e contas.

Eu admirava as cores e miçangas das contas, e apesar de tentar bastante, nunca acertei fazer turbantes, já me cansei de assistir os tutoriais na internet, mas não ficam tão lindos quanto estes. Observei atentamente, que dona Adalgisa pediu a benção para uma das senhoras, que respondeu Oxalá que abençoe, o que me remeteu a uma saudade boba da minha avó, a ponto de encher os olhos dágua, pois sempre que chego da faculdade e passo na casa dela para pedir a benção, é assim que ela me responde. Dei uma disfarçada para os meus amigos não perceberem, quando fui pegar o celular para ligar para ela, me dei conta de que esqueci na casa da Camila, o que não seria um problema, mais tarde eu o pegaria e chegaria em casa para contar tudo pessoalmente para a minha avó sobre este caruru.

Em questão de minutos, chegaram dois rapazes também vestidos de branco, que eu deduzir serem os filhos da dona Adalgisa. O primeiro, o mais alto, passou por nós e me encarou por alguns instantes, e eu também encarei, pois achei estranho, não o conhecia de lugar nenhum. Não sou de flertes, apesar dele ser um rapaz bonito, mas me parece ser grosseiro, pois estava o tempo inteiro sério, e o vi falar ríspido com uma das crianças na porta, ao contrário do segundo que já entrou nas gargalhadas.

A festa começou assim que eles chegaram, pois os refrigerantes que trouxeram estavam conservados numa temperatura boa para consumo. Foi colocado no meio da sala um lençol branco no chão, com um prato de barro grande, iguais aos que se encontram nas estradas com oferendas, porém cheio de caruru e tudo o que vai nele. Cana, queimados, pipoca, rapadura, absolutamente tudo. Minha boca encheu dágua e por um instante, quis muito me sentar ali no meio das sete crianças que sentaram, na famosa barbulha. Num canto da sala, havia um altar com velas coloridas acesas, e um Cosme e Damião, rodeado de queimados e com pequenos pratinhos de barro iguais aos que estavam no chão. A senhora que chegou e abençoou a todos, puxou uma reza chamada Cruzeiro de Jesus, após findarem a reza que responderam apenas as pessoas de branco, bateram palmas e as crianças começaram a comer.

Naquele instante, dona Adalgisa deu uma espécie de grito e o corpo ficou inclinado para frente, a senhora que havia começado a reza, a colocou de joelhos e disse algo em seu ouvido, ela prontamente deu um grande sorriso e disse sou eu o Cravinho da mãe. Eu sabia que ali não era mais ela, já tinha visto outras incorporações em minha vida, era um Erê, que deixava dona Adalgisa igualzinha a um menino, e o filho dela que antes estava todo emburrado, até que sorrio quando o cravinho falou com ele.

Eu não notei, mas a casa estava enchendo. Muita gente da rua chegando, e as pessoas foram se aproximando para ver o Erê, que brincava com todos e não saia de perto daquela senhora, que mais tarde eu souber ser a mãe de santo da dona Adalgisa. Após todas crianças da barbulha comerem, foram distribuídos os pratos, e eu estava na fila esperando a minha vez quando a senhora me chamou. No primeiro instante, achei que não fosse comigo, olhei até para trás, mas ela disse que era eu mesma, então fui até ela.

Ela disse que Cravinho queria muito falar comigo, mas que como sabia que talvez eu não conseguisse compreender o que ele estava falando, ela preferiu me chamar e não deixá-lo ir até mim. Respondi que tudo bem, e me sentei no chão para ficar do tamanho dele, atenta as palavras meio emboladas, ouvi Damãezinha vai precisar perder alguém que ama muito, para se encontrar. Damãezinha tem herança, e é filha da mãe das águas doces. Ora yeye ô. Assim que ele terminou de falar, eu me arrepiei toda, dos pés a cabeça, e senti uma leve tontura quando ele me abraçou, acho que pelas horas que tenho sem comer. A senhora me perguntou se eu conseguir entender o que ele falou, e eu disse que sim, pedi licença e me levantei seguindo para a fila, mas antes mesmo de chegar até ela, fui abordada pelo filho da dona Adalgisa, o mais alto que se chamava Rodrigo, e me entregou uma marmita, avisando-me que os meus amigos estavam lá fora, impacientes me esperando para voltar para casa. Agradeci, me despedi e fui.

Não entendi muito bem a cara da Camila, que disse que a minha mãe ligou para ela diversas vezes, e que quando ela atendeu foi bem grosseira, perguntando se eu estava com ela. Não duvido, pois mainha tem dessas e eu somente esqueci o celular, o que não carecia de tanta agonia assim. Já estávamos no uber de volta para casa, e o Guilherme permanecia calado, às vezes mexia no celular, mas não falava nada. Ele ia dormir na Camila hoje, pois tinham combinado de irem à praia amanhã, eu como só soube de última hora decidir não ir, pois como diz minha avó, quem quer que vá convida de véspera. Subi apenas para trocar de roupa e pegar meu celular que estava em cima da cama descarregado, para variar. Peguei o mesmo uber e segui para casa, a espera da confusão da vez com a dona Analice.

Eu, AdaraOnde histórias criam vida. Descubra agora