8. O Samba

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Sexta Feira. Engenho Velho da Federação estava pegando fogo. E eu estava um pouco animada também. Lá em casa, apesar do clima pesado, todos seguiam suas vidas. Na saída para jogar o lixo fora, encontrei a Tia Lica pela manhã, conversando com a minha mãe. De todos da família, ela ainda estava de branco e cabeça coberta. Ouvi dizer que estava de resguardo e indo estes dias para o terreiro. Quando ela me viu, sorriu sem mostrar os dentes, e me chamou para perto. Disse estar com saudades e quando chegasse hoje mais tarde, me chamaria para conversarmos, pois tinha muito para me explicar sobre algo importante.

Minha aula seria à tarde, então aproveitei a manhã e arrumei a casa toda. Organizei as coisas do quarto do Lucas, e joguei as sedas dele no fundo do guarda-roupa dele. Olha, eu não estou apoiando certo? Mas também sei que é só uma fase, e que ele vai parar em breve. Confesso que assustei. Mas não vou julgá-lo e tô aqui para ele quando precisar conversar, sei que essa hora vai chegar.

O Lucas é um menino bom. Só fica assustado quando coisas muito ruins acontecem. Foi assim das outras vezes, nos outros problemas da família. Eu sempre fui mais firme, apoiava ele e a minha avó apoiava nós dois. A casa dela era nosso porto seguro nas brigas da minha mãe, com o meu pai chegando bêbado. E por falar em meu pai, foi para Candeias. Segundo minha mãe, ele foi para ajudar um parente com um terreno e essas coisas de fundação de casa. Iria passar o final de semana por lá. Dei graças a Deus. Não estou suportando conviver com ele em casa, inclusive tenho o evitado este tempo.

Comentei com a minha mãe sobre o samba lá na casa da Dona Adalgisa, ela me criticou, disse que não sabia que sentimentos eram esses de luto que eu tinha pela minha avó, que já ia para festa. O meu avô, ouvindo toda a conversa da varanda de cima, disse: Vá mesmo, minha filha, e se divirta. Você e jovem, e a sua avó não ia gostar de te ver assim triste pelos cantos. Você sair um dia não significa que não a ama e sente falta. E eu o obedeci. Nem liguei muito para mainha. Às vezes ela acha que só o jeito dela de pensar que está certo, que somente ela tem razão em tudo. Fico me policiando direto, para não me pegar tendo os mesmos comportamentos dela. Sabe como é né? A porra da convivência, filho de Peixe... Éramos parecidas em muita coisa, mas também discordamos muito. Ela gosta da razão e eu da minha paz.

Após organizar minhas coisas, comi e fui para aula. Não vi o Bruno pelo Campus, mas conheci uma menina chamada Milena, que fez dupla comigo para atividade feita em classe. Ela era bem legal e meio doidinha. Me disse ter uns seis meses de iniciada para Iemanjá, que estava saindo da faculdade e indo direto para o terreiro dela, pois estes dias tinham pessoas recolhidas para passar o mesmo procedimento que ela. Conversamos sobre muita coisa, além de candomblé. Milena inclusive me disse conhecer os irmãos Rodrigo e Bruno, e que eles iam frequentemente tocar no terreiro dela, pois eram ogãs. Bom, eu não quis me aprofundar muito, pois era primeiro dia que conhecia ela. Trocamos números, e no final da aula acompanhei ela até o ponto, e fiquei até seu ônibus chegar. Fui caminhando para casa e até que cheguei rápido. Havia mensagem do Bruno, me perguntando que horas ele poderia passar para me buscar. Eram 17 h, respondi que em uma hora estaria pronta e comecei a me organizar,

Às 18h, em ponto, o Bruno mandou mensagem dizendo que já estava na porta do meu beco. Eu sair e me encontrei com ele que estava lindo. Todo de branco e calçado num chinelo de couro. Reparei num fio de conta que ele estava usando, cor amarelo e azul-claro, eu não soube identificar e perguntei para ele, que respondeu ser do pai dele, Logun edé. Ele me deu o capacete, colocou o dele e fomos. Quando chegamos lá, eu fiquei constrangida. Primeiro que o tal samba, era mesmo samba, mas não como eu estava pensando. Meu Deus, o meu vestido amarelo era ciganinha e estava um pouco acima do joelho. Eu falei para o Bruno: - menino, achei que fosse um samba normal, ele rindo respondeu para mim, que era sim um samba normal, mas que os caboclos eram bem vindos, afinal a viola era para eles. Eu fiquei muito sem graça, devia ter me vestido mais recatada. Ele disse que não era para eu me importar com isto, fomos entrando e ele foi me levar até a mãe dele, que segundo ele queria me ver. Na passagem, vi o Rodrigo apertando o couro de um atabaque muito grande, que depois de um tempo descobri que se chamava Rum. Ele me olhou assim sério, nos encaramos por alguns instantes e eu segui. Oxe, eu não sei o que ele quer me encarando, ele tem problemas, só pode.

Dona Adalgisa estava na cozinha fritando uns acarajés, e tinha outras senhoras com ela, colocando em pratos, abarás e outras comidas. Bruno disse: Está entregue mainha, saiu sorrindo e me deixou lá na cozinha. Dona Adalgisa enxugou suas mãos na saia e disse para eu seguir ela. Eu fui. Fomos até a parte da frente da casa, em um quarto com assentamentos parecidos os que a minha avó tinha na casa dela. Ela mexeu em um armário e pegou um papel e me disse que nele continha um endereço de uma mulher, muito amiga da minha avó e que poderia me ajudar com futuras dúvidas. No momento não entendi, mas agradeci para ela. Ela me disse também que eu aproveitasse a festa, e ficasse a vontade e que desculpasse os abusos do Bruno, mas que ele era um meninão mesmo, e que o Rodrigo, apesar de não parecer, também era um rapaz com coração de ouro. Bom, ouvi atenta as palavras dela. Também né, ela é mãe, vai dizer que os filhos são maravilhosos. Sobre o Bruno eu concordo, já o Rodrigo, não sei não.

Não demorou muito, o samba começou. Estava tocando no atabaque Bruno e Rodrigo, e outros rapazes que eu não conhecia. O moço da viola era um coroa simpático, que tocava muito bem. Aos poucos os anfitriões da festa chegaram. Dona Adalgisa e outras duas senhoras que estavam na cozinha, manifestaram em caboclo. Era uma energia diferente de tudo, mas muito lindo de se ver. Até agora eu não estava confortável em beber, mas estava comendo bastante, como boa taurina que sou. O lugar ficou razoavelmente cheio, o quintal da dona Adalgisa deu para todo mundo sentado curtir à vontade. Os caboclos se chamavam: Pena Verde, morro preto e Boiadeiro. Entidades lindas mesmo sem estarem vestidas.

O boiadeiro me puxou para sambar algumas vezes na roda e eu fui. Não pude deixar de perceber os olhares do Rodrigo e do Bruno, por isso tratei logo de me sentar. Creio que sei o que estava rolando, mais eu não seria conivente disto. Algumas horas depois, chegou a Camila e o Guilherme. Eles sentaram do lado oposto ao meu, e eu fiquei tranquila com isto.

Levantei para ir ao banheiro que era na parte de dentro da casa, no meio do corredor. Encontrei no caminho o Rodrigo e o Guilherme conversando, um tanto perto demais, dava para perceber que o Guilherme estava alterado pelo álcool e tentava agarrar o Rodrigo, que estava se esquivando. Quando eles me viram, a situação não mudou. O Guilherme continuou tentando beijar e o Rodrigo super calmo, falando para ele parar. Então o Guilherme disse: Não acredito que você não me quer mais, é porque hein? Por causa dela?. O Rodrigo ficou visivelmente irritado e começou a gritar com ele, dizendo que de onde ele tirou aquela história e se ele estava ficando maluco. Rodrigo saiu de perto e largou o Guilherme lá, eu entrei para o banheiro pensando na cena que acabei de ver. Quando eu sair, o Guilherme estava na porta do banheiro me esperando, e disse assim para mim: Não encosta, nem sonha Adara, ele é meu.

Juro que fiquei com pena, até com vergonha alheia porque visivelmente ele não era dele não, quer dizer, eu acho né. Não sei, sei lá. Não vou ficar pensando nisto, não tenho nada com isto.

Quando eu sair os caboclos já tinham ido embora, e eu pensei melhor ir também. A Camila tava bebendo muito, e no mesmo tanto de embriaguez que o Guilherme, eu nem encostei. O Bruno insistiu em me levar em casa, e eu disse que não precisava, para não se incomodar que eu estava pedindo um uber, faltando 8 minutos para o meu carro chegar, na porta da casa da dona Adalgisa, o Rodrigo me puxou pelo braço e disse: preciso falar com você.

Eu, AdaraOnde histórias criam vida. Descubra agora