4. O enterro

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Estávamos todos em frente ao campo santo, aguardando a chegada dos demais parentes. Eu estava muito calada e quieta no meu canto, observando a tudo sem falar com ninguém. Me mantive distante do meu pai o máximo que pude, e não estávamos nos falando estes dias. Na minha cabeça ele era mesmo o culpado disso tudo, tão intolerante a ponto de agredir a tia Angélica. Inaceitável. O Lucas anda estranho, e pouco o vi nesses dias. Sempre com os olhos vermelhos e enfiado no quarto, acredito que também deve estar muito abalado, mas o foda é que eu estou tão triste, tão magoada, contudo que não consigo ampará-lo. Pelo menos não agora.

Quem resolveu tudo do enterro foi o tio Paulo e a esposa dele, o único que estava com mais lucidez e aparentemente forte para a situação. Bom, não sei não, essas pessoas que não choram, não conseguem pôr para fora nem um pouquinho do que está sentindo, tem o pior nível de luto. A tia Lica estava pela roça desde o dia do acontecido, segundo a minha mãe ela faria parte dos processos que seriam feitos após a morte da minha avó, que por ser de candomblé, acontecem um tipo de cerimônia diferente, não sei explicar muito bem.

Em alguns minutos, foram chegando muitos carros e pessoas de ônibus ou caminhando também. Todos de branco. Muita gente mesmo. Por um lado me assustei, e perguntei ao rapaz que trabalhava no cemitério se era enterro de outra pessoa, e ele disse que não, que para aquele horário estava marcado somente o da minha avó. Achei lindo as pessoas todas de branco estarem ali por ela. Não sabia que ela conhecia tanta gente, mas achei bonito.

Na hora do sepultamento, o cemitério parecia um tapete branco, se observado de cima, e os pontinhos pretos eram as pessoas da minha família. No momento para levar o caixão, as irmãs de santo da minha avó começaram a cantar uma música que eu não entendia, mas achei a letra triste e, ao mesmo tempo, bonita. A tia Lica estava incorporada em Oya, e andava pelo cemitério, lá na frente puxando o cortejo. Havia muitas pessoas manifestadas e eu não sabia se prestava atenção nelas, ou se me despedia da minha avó. Quando me dei conta, o caixão dela foi colocado sob a terra e o coveiro fez os processos para fechar, todos que estavam incorporados deram um tipo de grito, e eu comecei a me arrepiar e chorei muito, lembro que senti as minhas pernas fraquejarem e uma energia muito forte. Minha mãe me abraçou forte e eu só enxergava turvo. Uma das irmãs de santo da minha avó veio para perto de mim, me ofereceu uma água e disse a minha mãe que seria melhor caminhar comigo, para fora.

Já na saída, eu estava melhor, mas sentia um vazio no meu peito. Apesar de eu não estar mais chorando, me sentia estranha. Olhei para o céu e havia um arco-íris lindo por cima das nuvens, através dele eu entendi que a minha vó foi em paz. Todo o povo de branco foi saindo do cemitério, alguns iam embora, outros conversavam entre si e até bebiam. Eu achei estranho aquilo, mas não estava com muita cabeça para julgamentos. Não avistei mais a tia Lica, perguntei para a minha mãe e ela só respondeu com: foi para o terreiro, e então não questionei mais. Deduzir que ela se sentiria melhor lá, do que entre a família, ou ter que estar vendo meu pai, que eu nem sei porque veio para o enterro.

A caminho do carro senti uma mão tocar meu ombro, era dona Adalgisa com seus filhos, ela também estava de branco e colares. Me deu um abraço forte e disse que se eu precisasse de um colo para chorar, já sabia o caminho da casa dela. O filho dela mais simpático, que se apresentou como Bruno, me sorriu e também me deu um abraço. Já o Rodrigo, não me abraçou, mas me olhou com um olhar que entendi ser o máximo dele em esboçar sentimentos, e apertou minha mão me desejando pêsames.

Cheguei em casa antes dos demais, corri para o meu quarto e me joguei na cama. Pensei ter escutado uma tosse, algo assim, tentei ignorar, mas foi ficando mais frequente então sair pela casa procurando, e encontrei o Lucas fumando maconha e chorando com uma foto nossa com a vó quando éramos pequenos, na cozinha. Foi aí que desabei.

Eu, AdaraOnde histórias criam vida. Descubra agora