01 - Piloto?

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Estava descalço e com frio, não sabia para que lado seguir no imenso corredor da universidade. Era noite, ou será que era dia? Não sabia dizer, minha visão era turva e não raciocinava direito. Tentei lembrar que dia era e o que estava fazendo, mas nada vinha, sentia um borrão preguiçoso na minha mente, como se algo pesado abafasse meu raciocínio.

Sentia fome e impaciência. Não havia sinal de ninguém em lugar algum, tudo estava morto, não havia cheiros, nem som. Somente uma vibração que fazia os cabelos do meu braço se arrepiarem. Quando avancei pelo corredor senti meu corpo caminhar mais rápido do que jamais havia feito, cheguei no final dele em segundos. Outro corredor se abria à minha esquerda e no final dele havia uma garotinha, ela era familiar, mas não conseguia identificar de onde a conhecia. Era baixa e de cabelos morenos com um olhar alegre, estava de pijamas claros, com cabelos amassados de dormir. Ela sorriu e acenou. Acenei de volta, mas não lembrava de mandar meu braço fazer isso, ele simplesmente se mexeu como se não fosse meu.

A garotinha então sorriu e saiu correndo para outro corredor e eu a segui, não sei bem o porquê. Quando virei a esquina a garota já não estava sozinha, segurava a mão de uma senhora que estava de costas, mas algo estava errado, o olhar alegre da garota sumiu, seu pijama agora estava sujo de terra e mato, havia rastros de lágrimas em seu rosto, seu cabelo estava estranhamente bagunçado, como se tivesse sido puxado com força. Havia uma poça de algo vermelho no chão.

Então a garota chorou, sua boca abriu, mas nenhum som saiu. Havia desespero em seu rosto, mas não ouvia nada além da minha própria respiração. A senhora que segurava sua mão se virou e pude ver que ela usava roupas estranhas e velhas, toda coberta de terra e sujeira. Seus cabelos eram cinzas e desgrenhados, algo se mexia neles, mas não consegui ver o que.

Meu coração parou quando sua cabeça sem rosto se virou para mim, não havia nada, somente pele, quilômetros de pele enrugada, sem nariz, nem boca. Nada. Meu estômago revirou de nojo, mas não tive tempo de processar a imagem, pois a garota começou a falar e dessa vez havia som em suas palavras. Seus olhos brilharam brancos e sem córneas quando ela disse:

'Doce durmo.

Feroz me levanto.'

Sua voz morreu quando inúmeros fios vermelhos despencaram pela sua boca aberta, como uma cachoeira carmesim. 

Acordei suando.




Semanas antes:

— "As afeminadas sofrem e os padrões curtem". Você vai usar isso como título do seu TCC? – levantei os olhos da folha.

— Não ta demais? Eu achei tudo.

— É um tema meio batido, né? — o documento pesava nas minhas mãos — e to achando que esse título informal não é válido. Sei lá, não estou menosprezando o seu trabalho nem nada, só mencionando que existem vários TCC's como esse. Não sei se me entende.

— É batido, mas é necessário. Vivemos num mundo onde o gostoso é aplaudido e a magra afeminada — ele diz isso apontando a si mesmo dos pés à cabeça – é vista como chacota e motivo de piada.

— Nisso você tem razão. Você é uma piada.

— E mais! Depois que aquele cara virou presidente, agora sim é que precisamos mostrar que as gays sulistas existem e que nem todas são brancas saradas e pertencentes à casta da família real — e exaltando a voz completou para que todos no corredor pudessem ouvir — e torcer que o mundo pense que "O Sul é o meu País" foi só um grande delírio coletivo.

O Lobo e o PeixeiroOnde histórias criam vida. Descubra agora