02 - O vendedor angustiado

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No fim das contas eu sabia que viria até mim, de todos os atendentes da loja ela viria direto até mim. Era incrível o dom magnético que eu possuía de puxar somente clientes no ápice da arrogância. Quando notei aquela senhora entrar pelas portas giratórias, limpando as mãos o mais rápido possível e com seu olhar por cima dos óculos, já sabia quem seria sua presa. Eu.

Quando desfilou em meio às vitrines e ignorou os outros vendedores como se fossem manequins sem vida, sabia que sobraria para mim. E se ainda não me restassem certezas, poderia suspeitar pelo modo sutil que caminhou na minha direção contraindo os cantos da boca e me olhou de cima a baixo.

— Você trabalha aqui? — nós usávamos um uniforme roxo dos pés a cabeça com um logotipo enorme no peito.

— Sim, Boa tarde, meu no...

— Eu quero um modelo que cubra a minha joanete e tem que ser claro. Número 39.

Simplesmente se virou, sentou em uma cadeira e começou a mexer em seu celular com o indicador.

— Alguma marca em mente? Modelo mais fechado ou aberto? Com ou sem salto?

— Modelo claro, que cubra a minha joanete. Número 39 — Disse sem tirar os olhos da tela.

— Sim senhora.

Subi as escadas da loja em direção ao depósito, peguei as primeiras caixas de sandálias e sapatos claros número 39 que achei, levei 6 caixas. Até aquele momento eu estava de bom humor. Depositei na frente da senhora e abri as caixas mostrando os modelos, ela olhou um por um sem nem tocar

— Não, nenhum desses.

Voltou a mexer no celular e eu peguei as caixas e subi novamente as escadas. Peguei mais 5 modelos e depositei na sua frente. Novamente sem tocar, ela desaprovou. Busquei mais 3 e nada que ela gostasse.

— Eu queria aquele ali com uma cor mais clara, sabe? — a senhora apontou para um sapato azul horrível.

— Entendo, infelizmente somente possuo azul—marinho ou preto nesse modelo moça. Posso ver se tenho outros modelos similares a esse tudo bem?

Se endireitando na cadeira com cara impaciente e sem me olhar abanou a mão e disse:

— Ta.

— Com licença, já retorno. — A minha vontade era de deitar no depósito e deixar aquela mulher esperando à toa por uns belos dez minutos. Foi o que fiz. Deitei em umas caixas de sapato amassadas no fundo do depósito e esperei exatos 10 minutos (o que não podíamos fazer) mexendo no meu celular (que não podíamos estar usando) e depois voltei com uma caixa apenas. Uma sandália bege bem feia. Ela odiou e bufando disse que iria em outra loja, pois o atendimento ali era péssimo, claro que tudo isso foi dito em alto e bom som acompanhado de um olhar sério da minha gerente. Essa é a vida de um vendedor em um dia normal. Detestava meu trabalho.

...

Toda vez que eu chegava em casa parecia que tinha trabalhado uma semana e não apenas mais um dia, minha mãe se preocupava comigo, notava isso no seu rosto, ela sempre dizia que deveria trocar de emprego e eu concordava. Era meio que tradicional nossa rotina, quando chegava em casa perto das 17:00h ela já me esperava com o café pronto na mesa e com uma fofoca quente do dia.

Minha mãe, dona Tereza, era uma peça difícil de descrever, mas extremamente fácil também, fácil, pois ela tinha todos os artifícios de uma mãe como outra qualquer, era rígida, gentil, protetora, fazia bolos, via novela e tinha nome de tia da cantina (e o corpo também). Mas o que dificulta descrevê-la é que também era extremamente culta, disso eu me orgulhava bastante, e tinha um dedo meu nisso. No ensino médio não trabalhava ainda e somente minha mãe nos sustentava com seu trabalho de faxineira, não tínhamos uma vida de luxo, dona Tereza chegava sempre tarde em casa, geralmente eu já tinha jantado e fazia a tarefa em frente a televisão. Não tínhamos muito tempo junto durante a semana, então ela me ajudava nas tarefas da escola, sempre nas questões de humanas (nós dois éramos péssimos em exatas). Se eu precisava ler um livro ou pesquisar algum artigo de história, ou geografia, ela fazia questão de me ajudar. Lembro que não tínhamos Wi—Fi e nem computador, então ela pesquisava alguns artigos pelo celular ou pelo computador nas lan houses do bairro. Era uma mãe batalhadora e nesse vai e vem de estudar juntos para suprir a distância do cotidiano, nos tornamos minimamente mais cultos e não perdemos o costume de estudar mesmo depois da escola e foi daí que eu me inspirei em fazer filosofia.

O Lobo e o PeixeiroOnde histórias criam vida. Descubra agora