Alvo.
Matar, morder.
Correr, perto.
Cheiro. Fome. Ave.
Acordei de bruços no gramado de casa, era madrugada e o sol estava longe de surgir. Estava com minha samba canção e meias. Uma dor de cabeça me acordou, me sentei e passei a mão no rosto e havia sangue seco nos meus dedos. Levantei assustado e havia penas e sangue ao meu redor. Uma carcaça de ave no chão perto de mim, seu peito aberto, uma coruja morta. Senti o gosto de penas na minha boca. Vomitei com nojo e horror. Mas não havia nada no meu estômago, só bile, meu estômago estava vazio e por um instante me senti aliviado de não ter jantado aquele bicho. O que estava acontecendo comigo?
Estava com medo, tremendo. Isso não poderia mais ser sonambulismo. Precisava de ajuda. Mas quem? Como? Não sei se era seguro contar a polícia ou pra algum médico, eles me internariam e minha mãe ficaria sozinha. Ela não poderia se sustentar sozinha. Precisava ver um psicólogo, um terapeuta, sei lá. Não conseguia pensar, meu coração batia forte no peito, minha cabeça quase explodindo. Senti frio e mesmo assim estava suando, minhas mãos tremiam. Senti enjoo e falta de ar. Outra crise de ansiedade.
Não consegui me mexer por minutos, fiquei encarando a coruja morta até meu coração desacelerar e conseguir voltar para casa. Tomei um banho, chorei debaixo dele. Eu estava quebrado. Algo em mim parecia rachado e eu estava enlouquecendo, sentei no box do chuveiro enquanto a água caia, temi pela segurança da minha mãe. Ela só tinha a mim. Lembrei do seu sorriso e de como ela dizia todos os dias que me amava, lembrei de como ela estava a poucos metros de distância dormindo tranquilamente, sem nem desconfiar do que se passava comigo. Me senti sozinho.
Depois do que se pareceu horas, saí do banho, juntei a coruja morta e seus restos num saco de lixo e joguei no final da rua num terreno baldio. Me senti um delinquente, mas não podia simplesmente deixar lá no gramado e nem jogar no lixo de casa.
Eu não sabia direito o que fazer, mas não poderia faltar ao trabalho para pensar nisso. Precisava trabalhar, nem tinha passado da experiência ainda. Não consegui dormir depois disso.
Não rendi em nada no meu trabalho, eu estava lento e cansado, mas ainda sim não me deixei abalar, tentei o máximo que pude para fazer as tarefas e tentar agradar os clientes. Erick perguntou o que eu tinha e respondi que estava com um mal estar apenas, ele não perguntou mais e tentou me guiar para tarefas menos difíceis. Ele era um cara legal.
Eu não era o único que parecia que tinha tido uma noite ruim, Arthur estava na sua mesa habitual no fundo da cafeteria, tinha os olhos fundos de sono e parecia um pouco pálido, dessa vez havia trazido seu notebook. Quando me viu olhando, manteve sua expressão neutra e voltou a mexer nas teclas. Havia se passado alguns dias desde que ele havia dito em voz alta que me vigiava, fiquei com medo a princípio, mas ele continuou vindo na cafeteria sempre sorrindo e simpático e isso acabou abafando esse medo e mantendo apenas um receio.
Mas naquele dia em específico, foi a primeira vez que o vi cansado e abatido. E com isso me senti mais forte de uma forma esquisita, pois o cara que me seguia e me vigiava estava abatido. Quando me aproximei da sua mesa Arthur apenas levantou os olhos.
— Noite difícil? — perguntei.
— Talvez, e a sua?
Me lembrei da coruja toda esgualepada na minha frente e meus dedos sujos de sangue.
— Nada demais eu acho.
Arthur franziu o nariz e me olhou estranho.
— Nada demais? Mesmo?
— Não sei porque ainda tento conversar com você. Só me faz perguntas e não me diz nada com nada.
— Desculpe. — para minha surpresa pareceu sincero. Ele parecia tão cansado quanto eu.
— Não desculpo. — fui mais rude do que pretendia.
Arthur me olhou intensamente por alguns segundos, fiquei pensando o que se passava em sua cabeça, e então voltou a olhar para o notebook. Suspirei, estava cansado dele, me virei e fui trabalhar.
Naquela tarde outra criança foi noticiada como desaparecida. Vimos tudo pela TV da cafetaria, todos os clientes pararam o que faziam e assistiram conosco, a foto da reportagem mostrava uma criança morena de 04 anos, não gravei seu nome. Os pais pareciam em pânico falando com o repórter. A legenda na tela dizia "criança desaparece durante a noite no bairro Cidade Nova".
Amanda tinha filhos pequenos e estava preocupada, ligou para o marido para reforçar a segurança dos filhos. Erick parecia desconcertado, pois sua mulher estava grávida e Arthur levantou e saiu assim que a notícia sumiu da tela.
Quando cheguei em casa já havia o mesmo carro preto estacionado na frente. Dessa vez eu não ignorei, estacionei minha moto e quando me aproximei da porta do motorista, ele arrancou cantando pneu e sumiu pela rua. Enquanto ele acelerava, tentei gravar sua placa.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Lobo e o Peixeiro
Manusia SerigalaÁlvaro é sulista de Santa Catarina, universitário de Filosofia com uma vida tranquila. Porém tudo muda quando em certa ocasião presencia uma criatura matar um colega de faculdade durante um passeio na mata. Por pouco escapa com vida e todos dizem qu...