"Nesses desencontros eu insisto em te encontrar. Como se eu partisse já pensando em voltar, como se no fundo eu não pudesse existir sem ter você".
Simone revirava na cama sem conseguir dormir. Contou quantas vezes repetia o processo e não ficava confortável o suficiente para pegar no sono: uma, duas, três vezes. Na quarta, desistiu e levantou. Fumou um cigarro e encarou o relógio. Os primeiros raios da manhã entravam pela janela devagar, como se soubessem que aquela forma lenta e vigorosa aumentava a agonia que sentia crescer dentro do seu peito. O cheiro de Soraya havia impregnado não somente em seu cabelo, mas em sua alma também. Já havia tomado um banho, mas não conseguia sentir nenhum outro cheiro desde que deixara o estúdio algumas horas antes. Pensou, pensou, fumou mais uns três cigarros até chegar à conclusão de que deveria voltar. Com sorte, ela ainda estaria dormindo. Poderia passar em alguma padaria, e dizer que saiu apenas para comprar algo especial para o café. Começava a sentir raiva de si mesma por ser tão estúpida, era tão idiota a ideia de tê-la deixado ali, tão frágil, linda e sozinha, dormindo depois de uma coisa que sabia que Soraya nunca havia feito antes. Deu alguns tapas no próprio volante, quem sabe a dor física fizesse com que ela sentisse a punição que julgava necessária para conseguir encontrar a loira no loft. Para Simone, as coisas funcionavam assim, na base da troca. A dor de um corte no corpo em troca de não sentir mais o padecimento que não era físico. Precisava acreditar que ainda havia tempo, e acreditou. Correu feito uma louca pelas avenidas já movimentadas de São Paulo. Tão depressa que não acreditou quando saltou do elevador direto para a porta do apartamento. As mãos trêmulas indicavam nervosismo, uma ansiedade que não costumava sentir. Girou a chave e entrou devagar.
— Você? O que você está fazendo aqui e agora? Eu não te dei folga, criatura? — Simone esbravejou, esquecendo por segundos que Soraya podia ouvir.
— Eu esqueci uma lente e queria usar na faculdade hoje... Você disse que eu podia pegar, então vim buscar.
— Eu estava, na verdade, eu estou com visita. Você não pode chegar aqui, e ir entrando, sem me consultar, sem me enviar uma mensagem, Vanessa.
— Está falando da loira? Ela já foi. E disse que não queria te ver nem pintada de ouro. Aliás, acredita que ela achou que eu era sua filha? Mas quando neguei, afirmou que gente como você não podia mesmo ter filhos — a assistente sabia como o assunto maternidade era delicado para a fotógrafa.
Vanessa fala, da forma mais inocente. Ela tinha esse ar de boazinha, de menina doce, que jamais faria mal a ninguém. Simone foi atingida em cheio, sabia que tinha sido uma babaca, mas não imaginava que as coisas acabariam assim. Até porque, ela sempre conseguia contornar a história e se sair bem, por que com Soraya seria diferente?! Então, sentou-se, calada, pensando no que deveria fazer. Vanessa continuava tagarelando, falava como Soraya tinha sido arrogante, inconveniente, e que até tinha dito coisas particulares que havia rolado entre as duas.
— Tá, tá. Depois a gente vê isso. Você viu como ficou a autorização para fazer as fotos na ONG?
— Achei que eu estava de folga.
— E estava, mas a perdeu por ser uma menina intrometida e... como foi que você disse mesmo? Ah sim, inconveniente.
Vanessa riu, no fundo, era exatamente essa acidez que a fazia gostar tanto da chefe. A palavra tanto ficou marcada em sua mente, como quando sublinhamos a escrita com um marca texto verde florescente. Será que isso explicava o motivo por ter mentido para Soraya e para a própria Simone? A verdade é que ela já não sabia mais como fazer para que a fotógrafa percebesse que ela era a mulher perfeita para aquelas noites de sexo no loft. Claro que sabia que elas jamais teriam uma relação propriamente dita, sabia bem que Simone era casada, e que não era o tipo de mulher que sonhava com namoros e coisas fofinhas de casais. Mas não achava justo ver tantas outras mulheres passarem pelos lençóis brancos do loft enquanto ela, que aturava o mau humor, as crises de criação e todo o resto não tinha uma única oportunidade. A gota d'água foi ver como Simone ficou eufórica quando encontrou Soraya naquele parque idiota, naquele almoço mais idiota ainda. Depois daquilo, a morena, sempre tão cética, até mencionou que talvez existisse sim um destino. Vanessa quis furar os próprios tímpanos. Como que uma loira de farmácia, velha, podia causar tantas coisas em Simone, e ela, na flor da idade, tão entregue, fiel e sempre presente, não conseguia um único olhar? Nem se quer um elogio. Foi por isso que quando viu Soraya toda perdida, decidiu falar. Falou até mais do que deveria, mas se tivesse sorte, nem ela e nem Simone nunca mais cruzariam com a mulher porque o destino não existia.
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As coisas que perdemos nas sombras
FanfictionNem todas as histórias falam sobre amor. No mundo real, o desejo e o prazer costumam ser colocados à frente de qualquer outro sentimento. Para Simone, uma professora de fotografia, seus caprichos e vontades valiam muito mais do que qualquer outro...