Henrique estava apoiado na cerca de madeira, a cabeça inclinada para trás. Observava o céu límpido, sem estrelas. Algumas nuvens se moviam na escuridão. Seus irmãos ainda estavam entoando canções lá dentro do celeiro, e era possível ver as pessoas dançando através da enorme porta aberta.
Henrique havia decidido ir, não era muito chegado a festas, mas sabia que era importante para os irmãos que ele fosse vê-los tocar. Ele já tinha tomado banho e vestido suas roupas de dormir, quando olhou pela janela e viu os irmãos saindo. Deitou-se, mas não conseguiu dormir. Levantou minutos depois, se arrumou e saiu.
Agora estava ali. Entrou e ficou assistindo os irmãos cantarem, conversou com eles na pausa que fizeram. Eles estavam felizes, gostavam de tocar e cantar, era o que faziam para se divertir depois de tanto trabalharem na fazenda. No fundo Henrique sentiu-se feliz por ter ido também, apesar de não aguentar ficar muito tempo no celeiro, e ter saído assim que pode.
Estava pensando que iria entrar e ficar mais uns minutos antes de ir embora, afinal o trabalho no campo nunca parava, e no dia seguinte ele ainda precisaria levantar cedo. Ele se endireitou e se desencostou da cerca, ajeitou o chapéu na cabeça e começou a andar de cabeça baixa, pensando no que teria que fazer no dia seguinte. Foi quando se chocou com alguém.
— Me desculpe, estava distraída. — A voz angelical e trêmula soou pelos lábios da garota, falando tudo muito rápido, ela se afastou de cabeça baixa, parecia envergonhada.
— Desculpo se me dizer que também está fugindo da voz terrível daqueles caras. — Ele resolveu brincar, mas se arrependeu no segundo seguinte, a garota o olhou de olhos arregalados, seu rosto estava corado, e em uma rápida olhada para baixo pode ver que ela apertava as mãos. Havia deixado ela desconfortável, constatou.
— Na- não. — Ela gaguejou. Fechou os olhos e suspirou.
— Está tudo bem, estou só brincando. — Ele sorriu gentilmente tentando tranquilizá-la. — Peço desculpas também, estava igualmente distraído.
Ela assentiu encarando Henrique, embora não estivesse contando, ele percebeu que dessa vez o olhar dela demorou mais para se desviar dos seus. De um modo inexplicável e estranho para ele, seu coração pareceu começar a bater mais rápido.
— Não estou acostumada a festas. — Ela confessou baixinho e caminhou até um banco que havia sob uma árvore a poucos passos de onde estavam, sentando-se nele.
Henrique não sabia se sua fala havia sido direcionada a ele ou a si mesma, ficou em dúvida se devia permanecer ali e respondê-la, ou se devia se afastar.
Observou-a por alguns segundos. Era muito bonita. Os cabelos escuros e lisos estavam presos em um rabo de cavalo. Usava um vestido longo florido. Seus olhos, pode notar quando se encararam, eram de um verde esmeralda. Seu jeito era delicado, do tipo que você quer guardar em um potinho.
— A música é boa, eles cantam bem. — Ela disse fazendo-o se decidir ficar. Ele também caminhou até o banco, sentando-se a uma certa distância dela. Tirando o chapéu, ele colocou entre os dois.
— Meus irmãos se vangloriariam um mês se ouvissem você falar isso.
— Seus irmãos? — Ele assentiu. — Pelo menos não falei mal deles.
— Se tivesse falado eu teria concordado. — Ambos sorriram. Ela parecia um pouco mais relaxada, e ele tentava não encará-la muito.
— Então, como veio parar aqui?
— Digamos que eu seja quase que uma motorista particular da minha melhor amiga. Sempre a levo nos lugares em que deseja ir. Sempre consigo escapar, mas agora estou longe demais para deixá-la aqui e voltar para casa. — Ela se ajeitou no banco, um leve sorriso nos lábios. — Agora ela me abandonou, e não consegui me enturmar muito.
— Eu sou daqui e também tenho dificuldade. Fica tranquila. — Henrique disse e ela assentiu. — Eles dançam o tempo todo não sei como conseguem.
— Um fazendeiro que não dança country, uau. — Ela brincou, começando a se sentir mais à vontade na presença dele. Henrique deu de ombros, sorrindo de lado, e ela não pôde deixar de notar o quanto ele ficava bonito assim.
Ficou tão nervosa quando esbarrou nele minutos antes que nem havia parado para prestar atenção em sua aparência. À luz de um poste que os iluminava, os olhos dele eram de um castanho escuro, a barba escura por fazer emoldurava seu rosto, o cabelo também escuro e comprido na altura do pescoço balançava com o vento que soprava, vez ou outra ele passava as mãos por ele prendendo-o atrás da orelha. A roupa era simples, camisa pólo preta e calça jeans de lavagem escura, calçava botas. Não era o homem mais bonito que ela já tinha visto, mas havia algo no jeito dele que fazia ela se sentir diferente.
— Eu não sou um fazendeiro. Apenas um simples peão do campo.
— Para mim soa a mesma coisa.
— Garotas da cidade. — Ele brincou balançando a cabeça negativamente.
— Então como é seu nome, esqueci de perguntar? — Henrique perguntou depois de alguns segundos em silêncio.
— Anne. Prazer. — Ela estendeu a mão a qual ele apertou, pode sentir a maciez da pele dela em contraste com a sua calejada.
Ele abriu a boca para se apresentar, mas no mesmo instante seu celular começou a tocar. Soltando a mão dela ele pegou o celular no bolso, pedindo licença a ela, Henrique se levantou e se afastou um pouco.
— Oi. — Ela o ouviu dizer, não que quisesse ouvir a conversa dele, mas ele estava perto o suficiente para que ela não ouvisse. — Há quanto tempo ela está assim? ... Gina está em trabalho de parto... Ela está com muita dificuldade? ... Aguenta aí, chego em 10 minutos.Henrique desligou o celular e o guardou no bolso da calça. Apressado pegou a chave do carro no outro bolso e já ia se preparando para sair, então lembrou-se de sua companhia. Virou-se para vê-la.
Anne o encarava, sua expressão denotando uma certa preocupação misturada a curiosidade e desentendimento. Ele queria explicar a ela o que estava acontecendo, o porquê de estar saindo tão de repente, mas o pensamento de seu pai lidando sozinho com um parto o fazia querer partir o mais rápido possível.
— Me desculpe Anne, surgiu algo urgente. Eu preciso ir... — Ele disse com pesar, se afastando de costas, ainda a olhando. — Até mais. — Disse meio incerto, quando é que a veria de novo?
— Até mais... Eu acho. — Anne respondeu, mas ele não a ouvira, pois já estava andando apressado entre os carros estacionados.
Anne ficou o observando até perdê-lo de vista. Ouviu o ronco do motor sendo ligado e as luzes de uma camioneta preta passar rapidamente por ela, para logo em seguida tomar a estrada rumo a saída da fazenda, deixando para trás apenas poeira.
Sozinha com seus pensamentos, Anne continuou sentada no banco, se perguntando o que havia acabado de acontecer. Ela nem ao menos sabia qual era o nome do homem que agora inundava seus pensamentos. Havia gostado dele, e isso a assustava, não passara nem meia hora com ele, como poderia afirmar isso? Ainda havia o fato de ela ter escutado a conversa dele ao telefone, alguém estava em trabalho de parto, e se fosse a esposa dele? Seria ele casado? Poderia ele ser um médico obstetra? Mas ele disse que era apenas um simples peão e sua aparência parecia afirmar isso. Mas poderia ele estar fingindo?— Ei, Anne. — A voz risonha despertou Anne de seus pensamentos. Erguendo os olhos viu sua amiga vindo em direção a ela. — Até que enfim te achei, pensei que tivesse ido embora e me largado aqui.
— Não seria uma má ideia.
— Você nunca teria coragem de fazer isso, seu amor por mim não permitiria. — Sua amiga disse convencida, sentando-se no banco. — Belo chapéu, nem havia visto você trazer isso. — Ela disse erguendo o chapéu que o homem havia esquecido, fazendo Anne arregalar os olhos, contudo a amiga nem percebeu apenas colocou o chapéu na cabeça de Anne. — Fica muito bem em você.
Anne o tirou rapidamente da cabeça, e se o homem voltasse para buscá-lo e o visse em sua cabeça? Como sua amiga sentou-se mais próxima a ela não havia como devolvê-lo ao seu lugar, então ficou com ele nas mãos, sentindo receio em apenas segurá-lo.
— Preciso ir para casa descansar, amanhã cedo tenho prova. — A amiga falou, ao mesmo tempo deitando a cabeça no ombro de Anne. — Se você não se importar de sairmos agora.
— Nem um pouco.
Ambas se levantaram e seguiram para o celeiro para se despedirem do aniversariante e de alguns amigos. Anne por um momento hesitou, pensando se deveria levar o chapéu consigo ou se o deixava em cima do banco, mas não teve muito tempo para decidir visto que sua amiga já a arrastava pelo caminho de volta ao celeiro.
Ele disse que os cantores eram irmãos dele, não disse? Posso entregar para eles o chapéu. Mas e se ele estivesse mentindo? – Anne pensava enquanto passavam pelas portas do celeiro, os rapazes estavam lá, em um palco improvisado, tocando e cantando. Ao olhar para eles, ela logo desistiu da ideia de entregar-lhes o chapéu do homem sem nome, era tímida demais para chegar neles, sem contar que de algum modo atrapalharia eles.
Ah, Meu Deus, o que faço? Ela se perguntava, tentando esconder o chapéu atrás de si, com vergonha de que o vissem e soubessem que não lhe pertencia, pior ainda, que soubessem, principalmente os irmãos, de quem era o objeto, e a julgassem mal.
Minutos depois, as duas amigas saíram da festa, ao entrar no carro Anne colocou o chapéu no banco de trás. Sentou-se no banco do motorista, puxou o cinto de segurança com as mãos trêmulas, e não era de frio. Durante todo o trajeto ela ficou revivendo os acontecimentos da noite em sua memória, sua amiga estava cochilando no banco do carona de modo que o silêncio a fazia pensar mais ainda naquele homem.
Deus, porque essas coisas acontecem comigo? O que eu devo fazer?
Tempo depois ao estacionar o carro na garagem do prédio ao qual morava, Anne olhou para o chapéu no banco de trás e suspirou, em seguida saiu do carro deixando-o lá.
— O que você faria se alguém esquecesse algo com você, mas você não a conhecesse? —Ela pediu para sua amiga enquanto subiam as escadas para o apartamento.
— A procuraria para devolver. — Bocejando a amiga respondeu, como se fosse o óbvio, e de fato era, Anne sabia.
Deus me ajude. Foi o último pensamento dela naquele dia, antes de pegar no sono.
[...]
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Uma dose de clichê
Short StoryQuem não ama o bom e velho clichê? Ou quem há de negar que nunca ficou de ressaca literária após ler um clichê? Uma dose de clichê reúne os maiores clichês já contados e recontados no mundo literário. Porque uma dose de clichê nunca é demais.