☆ Capítulo 5 | O Canto das Estrelas ☆
Quando completaram um mês de mudança, a casa já estava quase totalmente arrumada — muito diferente do estado em que Miriam a havia encontrado — e Lucas e Luan haviam se adaptado bem à escola. Apesar das pequenas adversidades enfrentadas pelo mais velho, ele não ficava mais tão ansioso antes de ir para a aula. Fizera até mesmo algumas amizades e foi incluído nas brincadeiras de pega-pega no recreio. Naquela época, apesar da mudez, ele se passava por um garoto qualquer: sorria, ria (apesar de não emitir nenhum som), brincava, fazia as atividades e comemorava internamente quando batia o último sinal. Miriam, que havia arranjado um emprego de horário flexível como corretora de imóveis, sempre vinha buscá-los no mesmo horário — quando o sol poente pintava a avenida com tons dourados, e os meninos adentravam o carro agitados e morrendo de fome.
Lucas adorava aquela rotina após as aulas: eles voltavam para casa, iam direto para o banho, e Miriam preparava um lanche — geralmente, pãezinhos com queijo derretido e suco natural de manga (que havia em abundância no jardim). Depois, Luan enfiava-se no quarto para assistir seus desenhos infantis e Lucas ia fazer os deveres de casa — ou desenhar com seu novo conjunto de lápis de cor. Quando chegava a hora de dormir, a mãe os cobria e acendia os abajures dos quartos dos filhos, dando-lhes boa noite.
Naquela época, o tempo passava devagar. A manhã era longa, as tardes na escola pareciam durar horas, e a noite engolia a Terra lentamente; permitindo-os aproveitar cada minuto. Lucas sentia-se feliz. É claro que havia momentos em que ele ficava mal, mas ele não costumava ficar pensando demais neles. Os instantes de tensão — como nas vezes em que não conseguia ir ao banheiro, ou quando tinha que levantar a mão para responder à chamada — duravam pouco. Os olhares desconfiados e curiosos na escola cessaram, e os colegas só queriam brincar. Até mesmo o garoto mais maldoso da sala — aquele que havia planejado machucar Lucas para fazê-lo gritar de dor — pareceu ter perdido o interesse nele (apesar de quase sempre ganhar advertência por mal comportamento).
Aos fins de semana, Alberto ia visitar os filhos. Nas primeiras semanas, ele aparecia com brinquedos novos, biscoitos e propostas de passeios. Depois, as ligações e as visitas tornaram-se menos frequentes, pois o pai estava ocupado demais no trabalho. No fundo, Lucas começava a sentir certo alívio pela ausência dele. O menino não gostava nada da forma como ele observava a casa nova deles; como se não aprovasse a escolha de Miriam ou a pequena reforma que havia feito.
Na primeira visita, Lucas levou o pai para conhecer o jardim e as árvores frutíferas. O menino estava empolgado, falando mais do que o normal, mas Alberto não correspondia à alegria do filho.
— Pé de manga dá bicho e fede. Eu cortaria essa porcaria fora — ele murmurou. Lucas mastigava o biscoito que o pai havia trazido. Sem entender a implicância de Alberto com seu precioso pé de manga, retrucou:
— Mas eu gosto de mangas, se quiser pode levar algumas... — ele agachou-se para pegar uma fruta madura. — Olha, é docinha.
Alberto pegou a manga, e Lucas ficou feliz quando o viu descascar para comê-la. Mas o pai não estava com uma cara muito boa; era como se a fruta estivesse amargar demais. O menino não compreendia, porém, que o motivo de seu desgosto era outro. A verdade era que o pai invejava a vida que a ex-esposa estava construindo tão rápido. Miriam não precisava dele, afinal. Aliás, estava melhor do que quando estava casada com ele. Aquilo era demais para o homem orgulhoso que era, mas Lucas não entendia as paixões desvairadas dos adultos.
Tudo estava indo muito bem depois do caos da separação. Lucas não se lembrava mais das brigas, das confusões que o pai causava com suas latinhas de cerveja, das visitas às clínicas ou do pequeno apartamento que Lucas morou até os seus sete anos. Para a criança, aquelas coisas ficaram para trás. Miriam chegou a conversar com ele sobre a importância de Lucas tentar fazer terapia — mas o menino logo desviava do assunto, ou começava a chorar compulsivamente. Miriam então desistia de tentar convencê-lo; não sabia mais o que fazer em relação às condições do filho. Lucas estava feliz, e só aquilo importava para ela no momento. Ela também estava — o divórcio foi como tirar um enorme peso de suas costas. Adorava o seu novo emprego: apresentava as casas para alugar e vender com uma empolgação que levava os clientes a fechar contratos e vendas rapidamente; o que agradava a imobiliária a qual trabalhava. No entanto, Miriam ainda tinha metas maiores para a sua vida: desejava profundamente montar sua própria empresa de arquitetura, e sabia que um dia conseguiria.
Sempre que achava que o mês seria difícil financeiramente, o dinheiro vinha de alguma forma. Um dia, a mãe presenteou os meninos com um aparelho de DVD. Os olhos de Lucas e Luan brilharam; o entusiasmo fazendo-os soltarem gritos estridentes. Além disso, Miriam também havia comprado alguns filmes. Lucas não assistia mais aos seus filmes favoritos desde que o velho videocassete da família estragara, e ficou feliz quando a mãe comprou o novo e moderno aparelho.
Nos fins de semana, os irmãos costumavam assistir aos filmes juntos depois do almoço. Eles adoravam ver Spirit: O corcel indomável — Luan ficava horas imitando cavalos, correndo ao redor da casa como se estivesse galopando e fugindo de militares que queriam pegá-lo. Depois da sessão de filme, os dois brincavam no jardim até anoitecer. Quando Miriam lavava a varanda, os meninos gostavam de escorregar de um lado para o outro — para o desespero da mãe — ajudando-a a esfregar o chão com o próprio traseiro. Luan adorava aquelas brincadeiras radicais, quase sempre levando tombos e colecionando roxos pelo corpo.
Tudo estava correndo muito bem até que Luan começara a ter crises de febre e vômito novamente. Lucas ficava muito preocupado com o mais novo, que costumava ficar internado quando isso acontecia. Sempre que tinham que ir para o hospital para exames de rotina, Alberto os acompanhava. Um dia, porém, Miriam teve que ir sozinha, carregando um Luan febril no colo e puxando Lucas pela mão.
O mais velho lembrava-se bem do cheiro desagradável do hospital, dos corredores brancos e do quarto em que o irmão ficou internado. Mais uma vez, achou que Luan fosse morrer e nunca mais o veria — e nunca mais brincariam durante as tardes. Observava a mãe preocupada e exausta, e Lucas acabou se convencendo de que era algo grave. Apesar disso, Luan, mesmo com soro e medicamentos adentrando seu corpo através de uma agulha (Lucas não gostava nem de olhar), o menino não parava quieto. Queria seus carrinhos, clamava por chocolate e pedia a todo momento para ir para casa, pois estava ótimo. Mas, no dia seguinte, a febre o abatia de novo e ele adormecia por conta da medicação.
Naqueles dias, Lucas sentiu muita raiva do pai. Alberto só aparecera no dia em que o irmão teve alta. O menino pôde escutar os pais brigarem do lado de fora do carro; como quando moravam juntos. Alberto mal olhou para Lucas. Luan estava com as sobrancelhas franzidas, sentado em sua cadeirinha, provavelmente louco para reencontrar seu quarto e seus brinquedos. Ficara internado apenas por três dias, mas para ele, foi como se estivessem ficado ali por várias semanas.
Em casa, Lucas ajudava a mãe a fazer sucos naturais para ajudar na imunidade frágil do mais novo. Miriam também fazia sopa de legumes — a qual Luan odiava, mas sabia que tinha que tomar. Enquanto Luan estava no quarto, Lucas estava na cozinha com a mãe, em pé em um banquinho para alcançar a pia.
— Mamãe, por que o papai não gosta mais da gente? — o menino perguntou enquanto colocava os morangos picados dentro do liquidificador.
Miriam ficou calada por alguns instantes, desviando o rosto. Cortou mais duas laranjas ao meio antes de responder:
— Ele gosta de vocês, Lucas. Só está...muito ocupado — explicou calmamente. — Seu pai não apareceu no hospital para nos ajudar pois estava em outra cidade, à trabalho.
— Ah — o menino murmurou, observando as laranjas. Ainda estava com raiva de Alberto, mas tentou compreender a questão do trabalho. Sabia que era importante para ele; sabia que os adultos precisavam muito de dinheiro. — Tá bom.
Miriam acariciou seus cabelos cor de areia que cobriam-lhe a testa.
— Seu pai ama vocês — ela garantiu. — Agora, me ajude com essas laranjas. Pegue o espremedor de frutas, por favor.
O menino obedeceu. Ficou pensando no que a mãe dissera antes de dormir, o que resultou em um sonho estranho e sem sentido. Nesse sonho, Alberto havia se mudado para a nova casa deles e mandara cortar o enorme pé de manga. Lucas começou a chorar, arrasado com a ausência da árvore. O amado jardim havia ficado tão vazio, sem sombra e sem o cheiro adocicado característico da fruta. Quando acordou, ficou aliviado ao olhar pela janela e ver a árvore ali, intacta e imponente, oferecendo-lhe novos frutos. Depois do café da manhã, Lucas fez algo bobo aos olhos de muitos: abraçou a árvore, dizendo a ela que não deixaria ninguém cortá-la. O sonho o havia traumatizado.
Sentimentos confusos e densos demais para alguém tão novo compreender começaram a ser arquivados nas gavetas de seu inconsciente. Não só na dele, como na do irmão caçula, que era mais esperto e inteligente do que as pessoas imaginavam. Pequenas coisas que um dia viriam à tona em forma de ressentimentos e emoções desgastantes. Por hora, eles eram apenas crianças.
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O Canto das Estrelas
General Fiction★ Livro extra - Complementar a "O Canto dos Pássaros"★ Aos três anos de idade, o pequeno Lucas desenvolveu um transtorno de ansiedade que o impedia de falar a maior parte das pessoas. Desconhecendo a causa, o menino cresceu em seu angustioso silênc...