Chuva

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O odor de sangue pairava no ar, som de ossos se partindo, carne rasgando e, minhas mãos, cobertas por sangue. Gritos de horror preenchiam o ambiente, ressoando tão intensamente que pareciam emanar de uma montanha próxima. Corpos sem vida chocavam-se contra o solo, e a silhueta de uma criatura horrenda se erguia sobre mim. Com a cabeça em formato de um crânio de cavalo, com mais de dois metros de altura. Seus ombros eram assustadoramente largos, e os braços, do tamanho de cabeças humanas. Unhas carcomidas e rachadas adornavam suas mãos que seguravam uma lança feita de ossos.

À minha frente, jazia o corpo sem vida de Laila. Um grito de angústia se formava em minha garganta, mas não encontrava saída. A paisagem era um cenário de devastação, com silhuetas de muitos corpos espalhados, incluindo os de Liah, meus pais, Nina e Kiara... Todos mortos, e eu sentia a culpa pesando sobre mim. O rosto distorcido da criatura se contorcia em um sorriso aterrorizante, seus dedos se apertando fortemente em volta do cabo da lança. Com um movimento veloz, a figura colossal disparava em minha direção, erguendo o braço direito e preparando-se para desferir o golpe fatal. No entanto, antes que a lâmina pudesse tocar o meu pescoço, eu me ergui abruptamente, sentando-me na cama.

O suor escorria pelo meu corpo, minha respiração estava pesada quando acordei. Uma pontada pulsante latejava na minha cabeça me incomodando. Ao meu redor, o som de chuva batendo na janela ecoava, acompanhada de trovões distantes que parecia carregar uma raiva contida. Era como se a tempestade lá fora espelhasse a tristeza que reverberava pelo acontecimento do ano anterior.

Levantei-me da cama, estava vestindo meu pijama habitual que me mantinha aquecida durante as noites frias. Agarrei uma cadeira próxima à escrivaninha do meu quarto e a coloquei de frente para a janela. Sentei-me e comecei a apreciar o som suave e reconfortante da chuva que batia na janela fechada. O aroma fresco da chuva permeava o ar, trazendo uma sensação agradável. A chuva tinha um efeito calmante sobre mim, era como uma canção que acalmava minha mente. Graças às gotas de chuva, conseguia sentir cada detalhe das estruturas das casas ao redor. Embora não soubesse o alcance exato da minha "visão", conseguia captar vibrações de boa parte da cidade. Quanto mais próximo, mais nítido era o que eu percebia, mas à medida que a distância aumentava, os detalhes das silhuetas tornavam-se mais difíceis de discernir. No entanto, a chuva era uma aliada nesse sentido; as gotas de chuva criavam inúmeras vibrações que eu captava com satisfação. Tudo parecia ganhar nitidez e vida extra sob essa chuva revitalizante.

Meus pais ainda repousavam em seu quarto, enquanto eu permanecia sozinha no meu, apenas com a companhia de meus pensamentos. Para passar o tempo, movi minhas mãos habilmente, permitindo que a terra tomasse forma sob meus dedos, criando um pequeno boneco de terra. Era um hábito que eu havia desenvolvido para distrair minha mente. Comecei moldando a figura de Liah, o boneco vestindo trajes simples que lembravam um vestido com mangas curtas. Seus ombros eram delicados e os braços finos, como os de uma criança de oito anos. Seu cabelo, tão longo quanto o meu, chegava até a metade das costas, com a diferença que havia várias ondulações nas pontas. Ela costuma me visitar após a escola, e nossas conversas giravam em torno das aulas enfadonhas e das peripécias do ambiente escolar. Ela me conta que as vezes pergunta sobre mim para minha mãe, mas sempre evita o assunto quando pode. Não sei o porquê minha mãe evitaria falar sobre mim, mas nunca pensei muito sobre, nem desejo. Liah é uma garota amável, e adoro passar meu tempo conversando com ela; é sempre uma experiência agradável e divertida. Embora eu adore a companhia de Laila, é um alívio ter mais alguém com quem compartilhar pensamentos e conversas.

O próximo boneco que moldei representava Laila. Uma mulher grácil, com estatura média e dedos delicados. Seu rosto irradiava gentileza e bondade, com um sorriso radiante sempre. Suas vestes eram de qualidade moderada e ela possuía seu avental de cozinheira característico. Laila sempre cuidou de mim com carinho e esteve ao meu lado em momentos de solidão e tristeza. Ela lia os livros que eu pedia, sempre de bom grado. Era uma experiência divertida ouvi-la dar vida aos personagens das histórias e criar tensão para torná-las mais cativantes. Muitas vezes, sentia que Laila era mais uma mãe para mim do que minha própria mãe. Ambas me amavam, disso eu tinha certeza, mas minha mãe muitas vezes desempenhava o papel de professora. Nossos momentos juntas frequentemente se resumiam a ensinamentos sobre história, etiqueta ou matemática. Raramente havia diversão em nossas interações, ao contrário do que acontecia com Laila.

O Segredo das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora