Capitulo VI - Última peça

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Os meus olhos começaram a abrir e uma sensação de déjà-vu se deu. À minha direita estava a mesma enfermeira vestida de branco como sempre e, à minha frente, o médico. A expressão animada da mulher era bem visível, já os olhos do homem não mostravam muita emoção.

A senhora de branco começa então os teste do costume: uma luz apontada e com movimentos aos zig zags nos meus olhos, o levantar das ligaduras para provavelmente ver se as feridas estavam a sarar bem,... o normal.

Pelo ambiente tudo estava a ir bem. A enfermeira afasta-se e o médico começa a debitar palavras, frases.

- Descobrimos um coágulo no que denominamos em medicina de Área da Broca - a parte da cabeça que controla a fala - e, infelizmente, não era o único. Encontramos outro antes do seu córtex motor localizado no lobo frontal. Teve dois mini-avc que diminuíram o fluxo de sangue no cérebro, provocando o potencial estado vegetativo.

Não estava a conseguir perceber bem, era muita coisa: nomes estranhos, coisas sem sentido, além de que as minhas memórias não estavam completamente em ordem.

-Mas temos boas notícias; a operação correu bem e sem incidentes. Fomos capazes de retirar ambos os coágulos e, provavelmente, as suas funções motoras e de fala devem voltar, mas apenas o tempo dirá quando.

A mulher de branco esboça um grande sorriso do fundo do quarto, como se estivesse contente por ouvir aquelas palavras. Por mais estranho que parecesse, ela devia estar até mesmo mais feliz que eu. Eu sei que finalmente poderia voltar a recuperar o movimento e fala, e que assim iria poder desvendar o porquê de estar assim, mas isso assustava-me.

Será que eu quero mesmo saber o que se passou?

Além disso, aquele sonho que tive, provavelmente durante a operação, até que ponto seria verdade? E se for verdade porque é que a minha suposta namorada não me vem ver, porquê só essa tal Carolina?

Tenho medo, muito mesmo.

Os especialistas de saúde já tinham saído há algumas horas e eu estava agora apenas a afogar-me nas minhas dúvidas e receios da verdade.

De rompante algo corta o ambiente, a porta mesmo à minha frente abre-se, uma pessoa entra, como num conto de super-heróis em que alguém ouve a chamada do cidadão em perigo e vem ajuda. Era a mulher do lenço.

- Contaram-me sobre a operação, não tens ideia do quão feliz estou por ti! Agora só temos de esperar e tudo vai voltar ao normal... como era de antes ... - o fim da frase foi dito com uma certa relutância

Ao proferir estas frases, a mulher já se tinha ido sentar no banco do costume ao meu lado. A sua cara estava mais pálida do que o normal, e os seus olhos meio semi-cerrados, mas o sorriso que trazia continuava o mesmo de sempre, o que me deixava mais tranquilo. A mão dela encaminhou-se para a minha e o calor que sempre transmitira voltou a percorrer-me. Subitamente, o meu receio diminuiu.

- Eles tiveram de te rapar o cabelo para a operação, mas não te preocupes ele vai crescer rapidamente e vais voltar a tê-lo não tarda nada.

A voz dela era fraca. O que se passaria?

- Eu realmente quero que recuperes rápido, nunca foste uma pessoa de ficar parada. Imagino o quão difícil deve ser para ti estar aí, assim... Mas tu vais conseguir, eu sei que sim, portanto tenta, uma e outra vez, até conseguires.

A frase dela pareceu tão sentida, como se soubesse o que se estava a passar comigo.

Eu não posso virar costas a isso, não posso virar-lhe costas e ao que sou... ao que fui. Não posso ter medo, eu tenho de saber a verdade por mais horrível que seja ou por mais feliz que seja, eu quero saber, eu tenho de saber!

Com isto em mente, pus toda a minha energia no meu ombro, ante-braço, braço , dedos. Reparei que estava esquelético e quase sem músculo, mas eu tinha de continuar. Queria tocar-lhe, queria dizer-lhe simplesmente "Obrigado por estares aqui".

A minha mão foi de encontro à sua face. Os olhos delas estavam agora arregalados, a olhar para aquele braço que até há um momento parecia morto. Eu estava quase lá, só faltava um pouco.

Por favor, tu consegues, só mais um pouco, vá lá, por ti, por ela, pela verdade, pelo futuro.

Dou um impulso final e toco-lhe por cerca de dois segundos. A boca dela abre-se como se fosse gritar de alegria, mas afinal a boca abria-se para um último respiro antes do colapso. A minha mão deslizou pela sua face enquanto ela ia caindo pela ação da gravidade. Os meus dedos fecharam com intenção de a apanhar, mas não consegui, não tinha força suficiente para a aguentar.

Ali estava eu, um lenço branco com motivos azuis na mão e uma mulher inconsciente no chão, com uma enorme cicatriz no pescoço cheia de um líquido vermelho.

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