Não dá para evitar o que se quer

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Nas duas semanas seguintes à noite que passei na casa de Marília. Noah passou a falar mais. Ele fazia somente pequenos comentários aqui e ali ou respondia perguntas simples, mas isso era um passo enorme na direção certa.

Marília estava cautelosamente otimista quanto às coisas estarem finalmente melhorando. Nem preciso dizer que a terapeuta de Noah e suas professoras estavam animadissimas, embora continuassem sem saber a que atribuir essa mudança. Elas falavam muito a palavra espontâneo.

Noah passou a me ver como uma amiga da familia. Certa tarde, passei na casa deles em Brookline para buscá-lo enquanto Marília estava no trabalho. A escola de Noah estava fechada para reuniões, então ofereci-me para levá-lo a uma livraria que havia acabado de abrir em Cambridge. Notei que eles tinham uma vasta seção de histórias em quadrinhos e eu sabia que Noah ia adorar.

Pegamos o trem Red Line para a estação Harvard Square e caminhamos a curta distância até a livraria. Ele escolheu dois livros, pelos quais insisti em pagar, e comprei um livro de não-ficção para mim. Compramos dois chocolates quentes em uma cafeteria e levamos nossos novos livros para um parque ali perto. O tempo estava um pouco frio, mas parecia um dia perfeito para leitura.

Eu queria aproveitar nosso tempo sozinhos para tentar fazê-lo falar comigo, então, em determinado momento, enquanto estávamos sentados em um banco do parque, interrompi sua leitura.

— Não sei se você sabe disso, Noah, mas perdi minha mãe quando era criança. Eu tinha cinco anos. Então, entendo o que você está passando. Queria que soubesse disso. Nós temos muitos interesses em comum, mas eu não tinha certeza se você sabia que também temos isso em comum.

Ele pareceu pensativo. No entanto, após um longo momento de silêncio, me chocou completamente.

— Mas você a matou?

O quê? Pisquei.

— Não. Claro que não. Ela morreu em um acidente de carro. Por que você perguntaria isso?

Ele continuou a olhar para frente.

— Porque eu matei a minha..

Senti-me perdendo o fôlego.

— Do que você está falando?

Luísa tinha morrido devido a um aneurisma cerebral, então eu não conseguia nem ao menos imaginar por que Noah diria uma coisa daquelas.

Ele começou a tremer.

Pousei a mão em seu joelho.

— Noah, você pode me contar qualquer coisa. Por que disse isso?

Ele virou para me olhar.

— Na manhã em que ela morreu, eu disse que a odiava. Eu estava sendo bem cruel porque estava bravo por ela ter me colocado de castigo por uma coisa que fiz. A última coisa que eu disse para ela foi "Eu te odeio". Depois, ela foi para o trabalho e morreu. — Ele escondeu o rosto nas mãos. — Não falei de coração. Mas quando eu disse que a odiava, isso causou alguma coisa. Eu sei que sim.

Ele começou a chorar copiosamente. Senti uma tristeza profunda ao abraçá-lo. Como eu poderia fazê-lo entender que estava errado? No fim das contas, eu sabia que seria preciso mais do que somente eu para fazer isso acontecer.

— Noah, não é assim que funciona. Você não pode matar alguém com palavras. Nem ao menos disse aquilo de coração.

Ele afastou-se de mim.

— Mas e se ela tiver acreditado?

— As pessoas dizem coisas o tempo todo quando estão bravas. Adultos sabem que crianças não falam de coração quando dizem essas coisas. Nós sabemos disso.

M. Mendonça | G!POnde histórias criam vida. Descubra agora