Capítulo XX - O funeral da senhora Sharon (parte II)

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Âmbar volta a se sentar em uma das cadeiras, e vendo que sua madrinha se foi, ela volta a chorar. E invariavelmente se lembra de todos os bons momentos que passou com a madrinha, assim como todas as broncas que tomou dela. Um filme sobre tudo o que ela passou ao lado da madrinha nesses anos todos passa em sua cabeça, e Âmbar conclui que ela foi uma verdadeira mãe para ela, a despeito de não ter nascido do útero dela. Então Simón vai consolar a namorada.

Simón: "Âmbar, pode ter certeza que agora a tua madrinha está tendo o descanso que ela merece, depois de tudo o que ela passou".

Âmbar: "Sim, Simón. E pode ter certeza que ela está junto do Faisal no além".

Simón: "O cachorro da juventude que a tua madrinha adorava, já ouvi falar a respeito dele".

Âmbar: "A minha madrinha me contou que andou sonhando com ele nos últimos dias de vida. Acho que ele a buscou, no fim das contas".

Simón: "E imagino que para ele a Sharon era a única e legítima dona. Que nem a Mist em relação à Luna, a Kara em relação à Sol e o Max em relação a você".

Âmbar: "Pois é, os cachorros de ontem e hoje, trazendo luz e alegria por onde passam".

Faz bastante sentido, afinal quando Sharon ainda era uma jovem garota Faisal foi uma verdadeira luz no fim do túnel para ela, naquele período muito difícil para ela. Tempos de indiferença paterna, a irmã recebendo toda a atenção da família enquanto que ela era tratada como uma sombra dela, o pai ausente de casa em constantes viagens, um período muito conturbado da história política argentina de que alguma maneira influenciou na vida deles, Guerra das Malvinas... E agora em seu calvário final, nada mais justo que o labrador branco mais uma vez ajudar Sharon, ainda que por meio de seu espírito que em algum lugar desse mundo adormecido está.

Logo Âmbar é interpelada por sua velha rival VV e seu namorado Andrés. O casal presta condolências à loira oxigenada.

Âmbar: "Mas que ironia, vocês dois comparecerem ao velório da minha madrinha e ainda me prestando condolências...".

VV: "Sim Âmbar, tivemos nossa rivalidade pregressa há muitos anos, brigamos pela coroa de rainha da pista, mas esse é um momento no qual devemos esquecer tais rivalidades, ainda que por um breve momento. Imagino que esse momento deva estar sendo muito difícil para você, né?".

Âmbar: "Sim, a senhora Sharon era uma verdadeira mãe para mim, que do jeito dela me criou nesse tempo todo. E agora sinto como se meu mundo estivesse desmoronando".

VV: "Entendo Âmbar, passei por momentos parecidos na minha vida, mas tenho certeza que isso irá passar com o tempo".

Em seguida as duas velhas rainhas da pista se abraçam, com Andrés em seguida abraçando Âmbar e ainda conversando com Simón.

VV: "Oi Simón!".

Simón: "Olá VV!".

Andrés: "Então você é o famoso Simón, o guitarrista da Roller Band. Prazer em conhecê-lo".

Simón: "E você é o antigo rei da pista, Andrés Aguirre de Altair. O prazer é todo meu conhecê-lo. A propósito, você e a tua namorada formam um belo par".

Andrés: "E você e a Âmbar também, Simón".

Os dois conversam brevemente, com Andrés colocando o guitarrista a respeito do que se passa no Roller, incluindo a respeito da competição em Mar del Plata.

Terminado o velório, o corpo de Sharon é enterrado no cemitério da Recoleta, no mesmo jazigo em que se encontram não só sua irmã e seu cunhado, como também a avó de Bernie, Maria Cristina Fernández de Benson.

Antes do caixão ser fechado, Âmbar dá um último adeus à madrinha. "Madrinha querida, você se foi, mas saiba de uma coisa: jamais irei te esquecer, onde quer que você esteja. Jamais a esquecerei. Obrigado por tudo, nesses anos todos". E derrama algumas lágrimas de seus olhos. A cena emociona a todos ao seu redor. O amor e a gratidão de Âmbar por sua madrinha, a ponto de não apenas não tê-la abandonado nem no segundo incêndio da mansão Benson e nem em seu calvário final, como também se despedir dela da maneira mais emocionada possível. Isso a despeito de Sharon ser dentro da sociedade argentina uma pessoa muito controversa e comumente odiada por muitos, por conta de tudo o que ela fez em vida.

Após Âmbar se despedir emocionadamente da madrinha, o caixão é fechado e Sharon é enterrada em um dos espaços do jazigo. No jazigo que será seu local de descanso eterno depois de mais de meio século de uma vida sofrida.

Улетай на крыльях ветра

(Voe para longe nas asas do vento)
Ты в край родной, родная песня наша,
(Você na nativa terra, canção nativa nossa,)

Туда, где мы тебя свободно пели,
(Para onde eu e você cantávamos livremente,)

Где было так привольно нам с тобою

(Onde eu e você éramos tão livres)
Там, под знойным небом, негой воздух полон,

(Lá, sob o céu ardente, o ar de felicidade está cheio,)
Где под говор моря дремлют горы в облаках.
(Onde sob o som do mar dormitam montanhas nas nuvens.)

Там так ярко солнце светит,
(Lá o sol tão claramente brilha,)

Родные горы светом заливая,
(Montanhas natais com a luz inundando,)

В долинах пышно розы расцветают,
(Nos vales as rosas suntuosamente florescem,)

И соловьи поют в лесах зелёных
(E os rouxinóis cantam nas verdes florestas)

И сладкий виноград растёт.

(E a uva doce cresce)
Там тебе привольней, песня

(Lá você é livre, canção)
Ты туда и улетай

(Você vai para lá e voe para longe) [1]

Como a senhora Maria Luisa imaginou, de fato, foi Faisal aquele quem veio buscar a senhora Sharon. Talvez, ninguém melhor que o cachorro que ela muito bem cuidou, muito amou na juventude para isso e que nos penosos anos de juventude foi um verdadeiro raio de luz para ela.

Sharon se vê em uma floresta densa, e após andar um pouco vai a uma clareira. "Onde estou?", ela se pergunta. De repente, ela ouve alguns latidos, e ao olhar pelos lados vê que se trata de seu querido Faisal. "Faisal, então é você", diz Sharon, alegre de poder vê-lo mais uma vez. "Você está junto de mim, né Faisal? Ontem, hoje e sempre", diz Sharon. Faisal late, como se quisesse falar algo à dona, e nos olhos dele percebe-se a felicidade de poder ver a dona. Então das costas dele saem duas asas angelicais e ascende aos céus. Dos céus, uma luz de cor dourada é emitida na direção de Sharon, e ao ser banhada pela luz ela ascende aos céus.

Ao ascender aos céus, Sharon se sente livre. Livre de todo o fardo que ela teve que carregar em vida, de sua vida de penitência, da doença que a afligiu pouco antes de vir a óbito, do passado que tanto a atormentou, das tantas portas que se fecharam a ela em vida e fizeram-na trilhar um caminho tortuoso, enfim de tudo que a flagelou em vida. Ao fim de tudo, ela encontra Faisal e Harun, assim como sua irmã Lili e seu amado Bernie. "Lili, Bernie, vocês...?", pergunta uma incrédula Sharon à irmã e ao cunhado, que por sua vez a saúdam.

A senhora Benson se foi após cinco décadas e meia de vida. Algumas perguntas ficam no ar, consequentemente, e uma delas é: quantos mistérios será que ela levou ao local de descanso eterno dela, ao túmulo silencioso em que ela se encontra agora? Com certeza, muitos mistérios que talvez ficarão para sempre todo o sempre sem respostas concretas e dos quais aqueles que ainda estão nesse mundo apenas podem especular e divagar.

NOTA FINAL

[1] Para quem não sabe, esta música que eu mesmo traduzi vem de uma das óperas do compositor russo Aleksandr Borodin (1833 - 1887), Príncipe Igor (em russo Knjaz' Igor'/Князь Игорь). Mais precisamente, da partitura Danças polovetsianas (em russo Poloveckie pljaski/Половецкие пляски). É uma música muito bonita, por sinal.

Sou Sharon: a vida é um pesadelo (Sou Luna 5)Onde histórias criam vida. Descubra agora