Capítulo XXV - Reminiscências de um passado distante (parte I)

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Belo dia, a senhora Bilder trouxe para a casa dois cachorros: o labrador branco Faisal e o Golden Retriever dourado Harun. Desde tenra idade a senhora Bilder era fascinada por contos orientais (entre eles Ali Babá e os 40 ladrões, as 1001 noites, Aladim, Laila e Madžum[1], o conto do tsar Saltan, Ruslan e Ludmila, o homem na pele de tigre e Sinbad o marujo), como também gostava muito do idioma árabe (o qual exerceu grande influência sobre os idiomas português e espanhol no período de 711 a 1492, quando os mouros ocuparam grande parte da Península Ibérica) e o achava muito bonito de se escutar.

Os dois cães de médio porte trouxeram grande alegria à família Bilder, como não poderia deixar de ser. Entretanto, menos de um ano após trazer os cachorros para casa, a senhora Bilder adoeceu, vítima de um câncer no estômago, e ao fim de meses de calvário ela faleceu no hospital. Ela gostava tanto de Faisal e Harun que pouco antes de morrer, angustiada com o fato de que não vai poder vê-los crescer, pediu para que Alfredo, Lili e Sharon cuidassem muito bem deles.

A morte da senhora Bilder foi um verdadeiro divisor de águas na vida das irmãs Bilder. À época, Sharon e Lili ainda eram muito novas, tinham cerca de 9 a 11 anos. E com a morte dela, agravaram-se os problemas entre as irmãs Bilder: até então muito unidas (a despeito de problemas pontuais entre elas), desavenças entre as duas começaram a aparecer pelo fato de que o senhor Alfredo dava muito mais atenção para a caçula que para a primogênita. Era Lili, e não Sharon, aquela que sempre ganhava os melhores presentes, não importava a situação. Assim, podemos dizer que Sharon passou a ser uma espécie de sombra da irmã. E essa situação também se estendia aos cachorros: Alfredo dava toda a atenção a Harun, enquanto que Faisal não recebia a mesma atenção e carinho dele, mesmo quando o segundo pedia atenção da parte dele. Inevitavelmente, isso deixava Faisal por dentro chateado e até mesmo triste, de ver o senhor Alfredo quase não lhe dar atenção ao mesmo tempo em que era todo amor e carinho com Harun. De tal modo que o senhor Alfredo nunca levou o Labrador branco para passear, ao passo que fez isso aos montes com o Golden Retriever.

Além disso, desde que a senhora Bilder faleceu, o senhor Alfredo começou a passar muito tempo longe de casa, e até mesmo fora da Argentina, deixando muitas vezes as crianças sob os cuidados de babás que não conseguiam lidar direito com a bomba que ele a elas deixava. Enquanto as babás passavam perrengues tentando controlar os ânimos entre as irmãs Bilder, lá estava o senhor Bilder em cidades como Mar del Plata, Rosário, Montevidéu e Punta del Este procurando a Rosa das Marés. Ele até chegou a procura-la certa vez no Brasil, em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul.

E, quando o senhor Bilder voltava de viagem e passava um tempo em casa, ele dava toda a atenção do mundo à Lili, dava a ela ótimos presentes, dizia que ela era radiante e luminosa e trazia alegria por onde passava, enquanto que Sharon não tinha a mesma atenção por parte do pai. Sharon era a careta que só queria saber de estudo e trabalho. Não foram poucas as vezes em que Sharon quis tirar satisfações com o pai a respeito não só dessas ausências todas e do tempo em que passava fora de casa, como também da diferença de tratamento. Quando era inquirido pela filha, Alfredo sempre negava na maior cara de pau que preferia uma à outra e respondia que as amava de forma igual.

Na esfera política, estes eram tempos conturbados para a Argentina: Perón faleceu um ano após voltar ao poder, e ele foi sucedido por sua terceira esposa María Estela Martínez de Perón, a Isabelita Perón. Entretanto, Isabelita não tinha o mesmo carisma de Evita Perón e nem o mesmo traquejo político dela, e em 1976 ela foi deposta por uma Junta Militar, que instaurou o chamado "Processo de Reorganização Nacional". Como resultado, Isabelita foge para a Espanha (onde mora até hoje) e a nova ditadura, por seu turno, instaura um regime de terror de Estado que leva a dezenas de milhares de mortos e desaparecidos. Mas nada disso parece importar para a família Bilder, apesar do fato de que o senhor Bilder teve um primo da parte materna, Alfonso, que participou de um grupo de militância peronista da época, os Montoneros, e foi morto e desaparecido por conta da política de guerra suja da junta militar argentina. Até hoje, ninguém sabe o paradeiro dele.

Em 1978, a Argentina sedia sua Primeira Copa do Mundo, na qual se sagrou vencedora após vencer a Holanda na final, por 3 a 1. E assim a nação platina conquistou seu primeiro título em toda a história da competição máxima do futebol mundial, sob a liderança de jogadores como Mário Kempes, Daniel Passarella (o mesmo Passarella que mais tarde treinou a seleção argentina na Copa de 1998 e o Corinthians em 2005) e Leopoldo Luque e do técnico César Luís Menotti. Durante a Copa do Mundo, o senhor Bilder, um torcedor fanático do River Plate, foi assistir a todos os jogos da seleção argentina no estádio (tanto no Monumental de Nuñez em Buenos Aires quanto no Gigante de Arroyito em Rosário) enquanto deixava as filhas em casa sob o cuidado de babás. Aliás, sempre que o River Plate jogava no Monumental de Nuñez (e até mesmo fora dele), lá estava o senhor Bilder para prestigiar seu time de coração. Na derrota, na vitória e no empate.

Na medida em que o tempo passou, a Junta Militar Argentina foi se desgastando cada vez mais, protestos nas ruas argentinas se avolumaram cada vez mais pedindo o fim do regime instaurado em 1976. Para tentar se salvar, esta tentou uma última cartada: tomar as ilhas Malvinas, velha reivindicação territorial argentina, da Inglaterra. Assim, em 1982 se inicia a Guerra das Malvinas, na qual a Argentina, após tomar de início as ilhas em litígio, sofreu uma fragorosa derrota para a Inglaterra depois que esta, sob ordens da premiê Margareth Thatcher, enviou uma frota para retomar as ilhas. Um ano depois, a junta militar argentina cai e de seus escombros nasce o atual regime republicano vigente na nação platina, com Raúl Alfonsín sendo eleito Presidente da República em 1983.

Como já dito antes, Sharon se compadeceu de Faisal e passou a cria-lo com todo o carinho e dedicação, como se ele mesmo fosse o filho de quatro patas dela. Passou a alimentá-lo e a sair com ele todo dia pelas ruas de Buenos Aires, assim como passou a dar abrigo a ele nos frios dias do inverno portenho. Em troca, Faisal desenvolveu um carinho enorme por Sharon e a escolheu como sua legítima e única dona. E mais do que isso: para Sharon, Faisal se tornou o porto seguro dela, a luz no fim do túnel que iluminou sua vida nesses anos conturbados todos. Talvez, sem a presença do Labrador branco, Sharon teria enlouquecido, quem sabe até mesmo tirado a própria vida.

Nota Final

[1] Espécie de versão persa de Romeu e Julieta.

Sou Sharon: a vida é um pesadelo (Sou Luna 5)Onde histórias criam vida. Descubra agora