Capítulo XXIV - Os mistérios que os mortos deixam para trás (parte III)

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Bem longe dali, em Córdoba, Maria Luisa se encontra em casa com seu marido, Miguel Angel, com o qual é casado há mais de 30 anos. Nesses últimos dias, o senhor Angel teve que ficar em Córdoba para cuidar da loja em que trabalha, um restaurante que serve comida italiana. Apenas bem brevemente ele veio visitar Sharon em Buenos Aires.

Ele pergunta a esposa como que ela se sente com a morte de Sharon. E ela responde que por um lado está muito triste de ver que a prima se foi, mas que por outro está feliz de ver que não só o sofrimento dela já acabou como também a vida de penitência dela igualmente chegou ao fim. E invariavelmente se lembra da expressão do rosto serena e tranquila de Sharon, já morta. "Espero que agora ela tenha o merecido descanso depois de uma vida bem sofrida", diz a prima de Sharon ao marido.

Invariavelmente, Maria Luisa se lembra da história de Sharon, do berço ao túmulo, da aurora ao crepúsculo. Vagas e um tanto borradas lembranças da primeira vez em que a viu surgem em sua mente.

Tudo começa 54 anos antes, quando em uma família de classe média portenha nasce uma garota chamada Sharon Bilder, do ventre da senhora Josefina Bilder, esposa de Alfredo Bilder.

Eram tempos complicados para a Argentina. Muito se fala a respeito da sangrenta ditadura civil-militar que governou a Argentina entre 1976 a 1983, que instaurou um regime de terror de Estado e deixou para trás um saldo de cerca de dezenas de milhares de mortos e desaparecidos (boa parte dos quais de paradeiro desconhecido até os dias atuais). Entretanto, essa não foi a única dessas que a Argentina teve. A Argentina também teve um governo militar que foi estabelecido nos anos 1960, mais precisamente de 1966 a 1973. Ou seja, dois anos após o estabelecimento do regime civil-militar brasileiro, o primeiro de uma série de regimes de força cívico-militares estabelecidos na região do Cone Sul entre 1964 a 1976.

Em 28 de junho de 1966 o general Juan Carlos Onganía, representante da facção azul do Exército Argentino, derruba por meio de um golpe de Estado o então Presidente constitucional Arturo Umberto Illia. Tal episódio entra para a história como a Revolução Argentina. Onganía governou a nação platina até 1970, tendo sido sucedido primeiro por Roberto Marcelo Levingston (1970 – 1971) e depois por Alejandro Agustín Lanusse (1971 - 1973).

O período da primeira ditadura civil-militar argentino foi marcado por intensos conflitos políticos e sociais, que gerou uma fuga de cérebros da Argentina: intelectuais e cientistas argentinos abandonaram o país, ao mesmo tempo em que levantes (em espanhol puebladas) como o Cordobazo em Córdoba e o Rosariazo em Rosário explodem nas principais cidades da nação platina.

No fim das contas, em uma típica manobra de tirar os anéis para não perder os dedos, os militares organizam uma saída eleitoral em 1973, na qual os peronistas poderiam participar (embora sem a participação de Perón). Os peronistas, na pessoa de Héctor Cámpora, saíram-se vencedores com 49,53% dos votos. Cámpora, após ter sido empossado Presidente da República e governar a Argentina por menos de um mês, renunciou para que novas eleições fossem permitidas, nas quais Perón venceu com 62% dos votos. Cámpora, por sua vez, foi nomeado embaixador da Argentina no México pelo próprio Perón. Ele veio a falecer em 1980 na nação asteca em 1980.

Eventualmente, estes episódios da vida política e econômica da nação platina refletiam na vida de seus cidadãos, por meio de flagelos tais como inflação alta, desemprego, baixa produtividade industrial e carestia. E uma dessas famílias é o casal Alfredo e Josefina Bilder. Os Bilder são uma família germânica de originária de Dortmund que se estabeleceu na Argentina no final do século XIX. São uma família como qualquer outra de classe média que viviam em uma humilde casa no centro de Buenos Aires. Não tinham grandes posses, muito embora nada de essencial faltasse a eles.

E é nesse contexto de um país flagelado por convulsões e desordens sociais e políticas decorrentes de um dos muitos golpes de Estado desde que se tornou independente da Espanha em 1816 (entre 1930 a 1976, a Argentina vivenciou seis golpes de Estado [1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976]), que nasce Sharon Bilder, a primogênita do casal Bilder.

Ao olharem para a pequena Sharon deitada no berço, dormindo tranquilamente como uma anjinha, os pais da jovem garota inevitavelmente se alegram.

Josefina: "Essa é a nossa Sharon... veja meu bem, como ela dorme, a tranquilidade que ela transmite enquanto dorme. Ela é a nossa anjinha, o nosso orgulho".

Alfredo: "Sim, Josefina. E pensar que ela nasceu em um período tão conturbado para nós e o nosso pobre país...".

Josefina: "Olhe para o mundo conturbado a nossa volta... motins, revoltas, desordens, golpes de Estado sucessivos, dois deles em apenas quatro anos, inflação, carestia... A Sharon com certeza veio trazer um raio de luz e esperança para todos nós".

Alfredo: "Como se fosse uma flor no meio de um deserto".

Josefina: "Isso mesmo, meu bem. Até parece que nada disso está acontecendo enquanto estamos aqui olhando para a carinha de anjo dela".

Alfredo: "A Sharon, ela é um novo começo para todos nós. Uma nova vida, um novo começo".

Josefina: "Sim, meu bem".

O tempo foi passando e a pequena Sharon foi crescendo. Logo começou a engatinhar e a medida que foi ficando cada vez mais forte começou a andar por conta própria, a emitir suas primeiras letras e até a falar. Com o tempo, ela foi se mostrando uma garota sapeca e inteligente.

E, como ela é filha única, ela tem toda a atenção e o carinho da família. Quando a família Bilder recebe visitas, é inevitável os visitantes ficarem encantados com a pequena Sharon. Como por exemplo, certa vez, quando o casal Bilder recebeu a visita de um dos irmãos de Josefina, Ernesto Rodríguez, e sua esposa Valéria, que moram em Córdoba. Eles vieram à capital e trouxeram as filhas deles, Josefina e Maria Luisa. Isso quando Sharon ainda tinha oito meses de idade.

Alfredo: "Veja Ernesto, a Sharon, a minha filha pequena! Como ela é linda!".

Ernesto: "Estou vendo Alfredo... mas que careta é essa, hein Sharon?! Quem é a do titio?!" (em seguida Ernesto pega Sharon no colo, com ela retribuindo com mais caretas e sorrisos).

Essa foi a primeira vez em que as irmãs Rodríguez se encontraram com Sharon. Como não poderia deixar de ser, brincadeiras entre Sharon e as irmãs Rodríguez tiveram lugar, como por exemplo, brincadeiras de dar papinha, de dar mamadeira e até mesmo de fazer caretas. Algo do qual a pequena Sharon adora. Com os adultos, obviamente, controlando e observando tudo para que nada de errado ocorra.

Com cerca de 10 meses, Sharon foi batizada na Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, uma das muitas Igrejas portenhas, situada no bairro de Palermo, uma basílica de estilo romano dotada de duas belíssimas torres. Um evento no qual muitos dos familiares de Sharon tanto do lado paterno quanto do lado materno compareceram.

O tempo passou e um ano e meio mais tarde Sharon ganhou uma irmã, que recebeu o nome de Lili. Mais ou menos nessa mesma época também nasceu a terceira filha de Ernesto e Valéria, Desirée.

Com a vinda de Lili, as coisas sofreram algumas mudanças na casa da família Bilder. E uma delas é a atenção envolve Sharon: antes, ela tinha toda a atenção da família quando ainda era filha única. Agora que ela tem uma irmã caçula já não tem a mesma atenção de antes. O senhor Bilder, por seu turno, agora praticamente só dá atenção à pequena Lili. O que na verdade não chega a ser um problema dos mais sérios, visto que temos a mãe para contornar um pouco a situação.

Sou Sharon: a vida é um pesadelo (Sou Luna 5)Onde histórias criam vida. Descubra agora