INTERLUDE (II)

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  ERA NAQUELE MESMO SOFÁ EM QUE ESTAVA SENTADA que Céline e Ayrton se declararam pela primeira vez. Naquele sofá de couro que o relacionamento começou.

  Céline observava o couro escuro enquanto se lembrava daquela conversa que tiveram há trinta e sete anos. Seu coração parecia estar de volta naquele momento em oitenta e seis, batendo forte e feliz com a lembrança de Ayrton tão jovem e cheio de graça, e também de seus beijos.

  Ah, ela faria de tudo para poder voltar naquele dia, para poder ter Ayrton ali com ela outra vez, e para poder sentir os seus lábios nos dele outra vez.

  — É a primeira vez que volta pra cá depois do acidente? — Felipe, o entrevistador perguntou.

  Céline pareceu voltar para o mundo real e se permitiu desgrudar daquela lembrança tão boa que tinha — inclusive, havia uma foto daquele dia em um de seus álbuns de fotos. A ex-jornalista sorriu um tanto sem graça e concordou com os lábios presos um no outro.

  — Sim. É a primeira vez — respondeu. — Está tudo igual, por incrível que pareça — sorriu.

  Apesar de Céline sequer notar, as outras pessoas na sala sorriram em compaixão, e ela respirou fundo.

  Todos inclusive notaram que precisariam dar um tempo a mais para ela, até mesmo Felipe — que sentiu um olhar rigoroso de Charles.

   Céline detestava que sentissem pena dela, e por mais que entendesse que não era essa a situação, ela ainda assim detestava os olhares caridosos.

  Ela sofreu com a morte de Ayrton, sim. Mas e Neyde? E Viviane? E Adriane?

  Era por Ayrton ou era por sua doença?

  Ela detestava o clima mórbido também, por isso fez questão de respirar fundo e abrir um sorriso para a câmera.

  — O ano de oitenta e seis se não o melhor, foi um dos melhores anos de minha vida — disse. — Tanto da profissional quanto pessoal. Depois que voltei de férias, pode se dizer férias, não é? Eu não trabalhava para ninguém ainda — riu fraco. — Enfim... Escrevi minhas melhores matérias, especialmente com a ajuda de Béco. O seu desempenho passou a melhorar cada vez mais, com inúmeras poles e voltas rápidas... Uma pena ter vencido apenas duas corridas naquela temporada — ela considerou.

  — Aqui tenho a informação que esse foi um ano decisivo para sua carreira... — comentou Felipe — O que é que aconteceu, exatamente, para isso acontecer?

  Céline concordou.

  — Sim, você está certo. Foi um ano decisivo. Mas poderia ter sido por outro motivo — apontou.

  O restante da sala permaneceu em silêncio apenas esperando ela continuar.

  — Eu passei a postar independentemente, sempre sobre as corridas e algumas coisas foras que trariam visibilidade. Eu quem explanei as traições de Alain, que convenhamos, eram várias. Foram tantas que Anne-Marie sequer ficou chateada por eu ter feito parte disso tudo. É, eu sei. Nunca admiti antes, mas fui uma das amantes de Alain.

  O choque era visível na cara de todos. 

  Ninguém ali da sala sabia, nem mesmo Reginaldo, que já tinha ouvido falar dos rumores, mas nunca nada lhe foi confirmado.

  A família de Ayrton estava surpresa demais para falar algo, e Charles não conhecia esse lado de sua mãe.

  O de ser amante e o de confessar, numa enorme tranquilidade, que foi uma.

  No fim das contas, ela estava ali para falar, não era? E estava velha, não ia ter nada mais para acabar com sua carreira aposentada, então não tinha motivos para mentir.

  Ah, e ela também tinha pouco tempo de vida, é claro.

  Não faria diferença nenhuma ela mentir ou não, e sinceramente? Precisava falar a verdade.

  — Anne-Marie sempre soube, e os rumores sempre circulavam pelo padoque antes de eu conhecer Ayrton. Mas foi a última vez. Depois, só tive olhos para o brasileiro — riu divertida. — Ayrton estava muito belo naquele ano. Chegando em uma aparência mais madura, mais bonita... Até barba eu percebia crescer! Mas ele nunca deixava ela grande. Não. Detestava! — Neyde quem concordou com ela, rindo ao lembrar de seu filho reclamando quando os pelos já estavam grandes o suficiente para incomodá-lo — Aquele ano foi o melhor entre eu e Ayrton, ao menos para o nosso relacionamento. O único também — considerou. — Mas o melhor.

  Céline precisou de um tempo para respirar, e então depois de segundos em silêncio, ela retomou.

  — Nos divertimos tanto naquele ano, que acho que nunca ri tanto em minha vida inteira. Viajávamos juntos, pregávamos peças em Gherard, Galvão, Regi... Eram tantas que minha cabeça vira uma bagunça! — riu divertida. — Tenho quase todas anotadas, porque fiz questão de ter um diário depois dessa viagem para Angra — apontou. — Eu precisava deixar registrado tudo o que tinha, porque câmeras não eram suficientes. Ah, oitenta e seis foi divertido pra caramba. Foi nesse ano que meu português melhorou muito, aliás. Ayrton, Regi e Galvão só falavam em português comigo.

  — E ainda lembra? 

  — Ah, eu entendo muito bem. Essa nunca foi minha dificuldade. Agora, falar... Está enferrujado, bastante enferrujado.

  As pessoas na sala riram.

  Sequer se lembravam da revelação que havia feito.

 — No entanto, no final de oitenta e seis uma informação importante foi revelada ao público

  — O veto de Ayrton?

  Céline concordou.

  — Quando ele se mudou para Lotus, ele vetou a contratação de Derek Warwick. As pessoas não sabiam. Ninguém sabia — ela disse, e então encarou o entrevistador. — Eu sabia.

  — Você sabia?

  — Sim.

  — Você quem contou para a mídia?

  Céline respirou fundo.

  — Ora, é claro que sim. Fiz uma matéria sobre. A matéria que alavancou minha carreira — suspirou.

  Ela se arrependia amargamente do que havia feito, mas naquela época, não pensou que fosse algo tão grande e preocupante como havia sido.

  — Como Ayrton ficou?

  — Revoltado, é claro. Eu havia traído sua confiança. Brigamos bastante, aliás, mas consegui fazer com que me perdoasse.

  — E depois?

  — Depois? — ela riu. — Eu não aprendi minha lição da primeira vez, mas aprendi da segunda.



MY SOMETHING, ayrton senna (slow updates)Onde histórias criam vida. Descubra agora