🌙2: A Ardência

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Agora que não tem nenhum carro atrás ou na frente, me sinto seguro. Virando a mão da manobra, saio sem preocupações rumo a casa de Nana; o tempo da residência do ponta dos pés até a parada de ônibus daqui perto de Salen é 40 minutos, está quase na hora do almoço, isto me deixa esperançoso quanto a comer um pouco na casa da minha paciente. Antiético? Talvez, mas pra quê fingir que não sinto fome? Eu sinto! 

  Desde pequeno, quando decidi morar com meus avós, estou acostumado a estar no meio de velhos, entrar pra fisioterapia foi uma boa escolha, gosto do que faço, gosto do contato mínimo com a água que tenho agora por mais que seja estranho; gosto do meu trabalho, de lidar com senhores de idade que não tem tantas questões, curiosidade sobre minha vida ou assuntos desnecessários, eles só querem uma coisa: atenção. 

   E eu, sinceramente, acho proveitoso poder escutá-los. 

  Fico sabendo de notícias, fofocas, remédios caseiros, e ainda mato um pouco da solidão que os filhos deveriam se compadecer sobre. Quando me veio a proposta do ponta dos pés, a curiosidade me levou até lá, assim como levou-me a trocar papo, analisá-lo antes de ter certeza que iria mesmo cuidar de si, continuar um diálogo após saber pois de certa forma tenho que admitir que o mar me ensinou a adiantar trabalho. 
   Caso não o fizesse, poderia acabar morto ou preso em uma espécie de caverna mágica com um tritão apaixonante. 

  Solto um suspiro conforme meu indicador toca a campainha da cazinha pequena de portão grande ondulado, Lino >> o cachorro >> já anuncia minha presença, ouço o arrastar, então a senhora de cabelos ruivos (pintados) e baixo porte de coluna meio curvada sorri pra mim de duas maneiras: a boca fina meio rachada, e os olhos quais nas laterais formam risquinhos adoráveis. Suas mãos nodosas, frágeis, chegam nas minhas costas conforme entro segurando a pasta pois meus ombros estão doloridos; os olhos castanhos claros apontam pra entrada da casa, aguarda que eu retire os sapatos pra trocar então vou em direção ao banheiro de funcionários pra colocar o resto dos EPIs.

— Boa tarde, dona Nana, como vai a força? — Indago levantando um dos braços, ela sorri ameno sentando na poltrona, os medidores de sinais vitais no colo. 

— Tenho sentido muitas dores na lombar, o corretor de postura também está apertado... 

— Andou mexendo, não foi? — Elevo uma sobrancelha pela suspeita, seu riso alto me faz sobressaltar os ombros, também gargalhando. — A senhora não pode mexer nessas coisas, onde está seu neto? 

— Aquele vagabundo lá liga pra nada!

   Nego com a cabeça pousando o estetoscópio nos ombros, pego o aparelho de pressão e ela já estica o braço me dando acesso. 

— Também estou sentindo enjoou. —Avisa assim que termino de verificar. 

— Na hora da dieta está ficando quietinha? 

    Seus olhos baixam, nego com a cabeça. 

— E a possibilidade de um cuidador? Quando irá aceitar, dona Nana? 

— Não quero ninguém cuidando de mim, filho, não estou ruim a este ponto. 

— Não é questão de estar ruim, é de precisar, não há nada de errado em precisar de ajuda. 

— Hoje me auxiliam, amanhã limpam minha bunda! 

   Bato na testa com o comentário, anotando seus parâmetros, a saturação, então pouso o indicador entre os lábios anunciando que preciso de silêncio para ausculta-lá. Tá tudo ok. Fico aliviado retirando o esteto. 

— Hoje está tudo bem, vamos só fazer uns exercícios básicos, olhar este corretor de postura já que misteriosamente ele ficou mais apertado né... Então, prontinho. 

Ponta dos pés- jikookOnde histórias criam vida. Descubra agora