CAPÍTULO 1: Primeira e Segunda

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Minha mãe me disse
Que um dia eu compraria
Um barco com bons remos
Para navegar para margens distantes

Ficar em pé na proa
Remando um nobre barco
Indo em direção ao Céu
Cortando vários inimigos

My Mother Told Me - Danheim

Não lembro bem da minha primeira vida. Já se passaram tantos anos e tantos outros acontecimentos que boa parte do que eu lembrava aos poucos foi se apagando, acredito que o cérebro não pode armazenar tudo e eu também tomei a decisão de me desapegar mais do passado.

Qual era o meu nome ou se eu tinha família, essas informações se perderam da minha mente com o tempo, talvez façam parte das memórias que sumiram quando reencarnei, mas há uma cena nítida que permaneceu mesmo depois desse processo: A lembrança da minha primeira morte.

Eu estava em um campo de batalha, acho que era algum soldado importante ou nobre, já que minhas roupas eram coloridas e enfeitadas com botões e plumas desnecessárias, portava algo parecido com uma espingarda em uma mão não muito experiente. Meu uniforme estava manchado de terra, sangue e suor, as explosões e os gritos feriam os meus ouvidos, o cansaço pesava em meu corpo e o cheiro de morte impregnado no ar grudava em minha pele, cavalos relinchavam aterrorizados e homens gritavam enraivecidos.

— Ataquem! — bradava um homem em seu cavalo lutando para manter as rédeas sob controle, sua voz parecia surtir efeito nos soldados que lutavam com a força que já não possuíam. Eu sabia quem ele era, o exército gritava em seu nome. D.Sebastião. Em nome da coroa. Em nome do nosso país.

O jovem rei se vestiu de sua armadura e coragem se lançando com um grito de guerra contra o exército inimigo, seguido de perto por seus soldados. Homens que deram suas vidas em nome de suas crenças e famílias. Embora não tivesse sido dito, sabíamos que iriamos morrer naquele campo, então que fosse lutando e com honra.

A adrenalina dominava o meu corpo e anestesiava a dor, eu gritava e atirava sem parar para pensar, sem parar para analisar que eram pessoas. Não. Eram inimigos e em uma guerra ou você mata ou é morto. Corpos caiam ao meu lado e na minha frente, mal conseguia distingui-los.

De repente algo perfurou o meu peito dolorosamente e um grito de dor e surpresa escapou dos meus lábios, o vermelho rapidamente escorreu e cobriu a frente e a parte de trás do meu uniforme. Caí no chão ainda atirando e morri com a arma na mão.

Se tive algum último pensamento não sei qual foi, talvez não tenha pensado em nada, lembro apenas de cair sem nem sentir o impacto do meu corpo na terra e então tudo ficou escuro.

Anos depois, por meio de pesquisas e deduções, descobri que essa guerra foi a que ficou conhecida como a Batalha dos Três Reis, ou Alcácer Quibir, no ano de 1578. Ao menos é o que acredito que tenha sido com base nessa lembrança e outras não muito coerentes. O nome que o exército bradava era do rei de Portugal na época, D. Sebastião, soube que seu corpo nunca foi recuperado.

Ter encontrado essa informação me fez sentir menos louco, cada vez que pesquisei incessantemente sobre o passado armazenado na minha mente e encontrei evidências de que foi tudo real, me sentia dividido entre o alívio e o peso em meu coração e ombros que aumentava cada vez mais.

A minha segunda vida foi na Inglaterra.

Recordo-me dela com mais clareza, talvez porque por um tempo tornei-me mais como um adulto preso em um corpo de criança.

Nasci em um vilarejo chamado Eyam, em uma família de sete: meus pais e cinco filhos. Eu tinha um irmão mais velho e outras duas irmãs mais velhas, em seguida vinha eu e outra irmã mais nova. Lembro de brincar e correr pela grama alta, de ajudar meus pais nas plantações, de ir para uma pequena igreja todo Domingo. Era uma vida com algumas dificuldades e inconveniências, mas eu era feliz.

Comecei a ter sonhos com a guerra da minha primeira vida logo após meu décimo aniversário, pesadelos vívidos que me mantinham acordado a noite, além de ver rostos estranhos e vozes desconhecidas que me assombravam no escuro. Minha mãe, até hoje não esqueci seu nome, Agnes, era quem cuidava de mim quando eu acordava chorando, ela se sentava comigo e cantava algumas canções de ninar. Embora suas feições me escapem a memória, recordo do seu cabelo castanho e longo, vivia trançado e eu gostava de brincar com ele para me acalmar.

Ela me dizia que aqueles pesadelos eram apenas isso, não eram reais e quando eu estivesse com muito medo eu devia apenas rezar, com todo o meu coração e tudo ficaria bem.

Após um tempo os sonhos diminuíram, tentei não dar importância para eles e me forçava a tentar esquecê-los. Apesar de me sentir um tanto diferente e com uma visão mais madura para minha idade, achei que tudo voltaria ao normal.

Naquela tarde, eu estava brincando com minha irmã mais nova no quintal quando se espalhou a notícia que um dos nossos vizinhos tinha morrido. Dias depois outra mulher e seu filho tiveram o mesmo destino, e assim começou uma série de mortes agonizantes.

Aos poucos os boatos começaram a se espalhar. A mesma doença. Punição divina. A Peste. A Peste.

Dias depois veio o comunicado do padre e a única medida de solução: O isolamento. Pessoas do vilarejo fugiram aos montes, mas as famílias que não podiam se dar esse luxo permaneceram. A minha estava entre elas.

Um muro de pedra foi construído, dividindo todas aquelas pessoas do resto do mundo. Era um sacrifício. Era o fim.

O primeiro foi meu irmão mais velho. Posso não saber mais seu nome, mas lembro de nos sentarmos em uma tábua velha, a madeira desgastada e rangendo, rindo de alguma travessura que tínhamos feito enquanto nosso pai brigava conosco. Ou quando me levou para um pequeno lago determinado a aprender a nadar e me ensinar também. A última vez que me permitiram vê-lo ele estava na cama, o lençol ensanguentado e o cheiro podre no quarto que eu tentava tampar com um pano branco no nariz.

As ruas ficaram vazias e os lamentos dos doentes permeavam as noites passadas em claro, a sombra da morte sempre à espreita. Não existiam mais festas ou reuniões, o comércio praticamente se extinguiu e a fome também se tornou um problema, dependíamos da caridade dos outros vilarejos ou do pouco obtido através de trocas pelos buracos feitos no muro de pedra, com moedas embebidas em vinagre.

Logo depois a morte reivindicou minhas duas irmãs mais velhas e o meu pai. Agnes chorava e rezava todas as noites. Aqueles dias eram apáticos e cinzas, eu acreditava que estávamos sofrendo de alguma punição e não concordava em ter que ficar naquele lugar, queria fugir, mas minha mãe disse que não. Era o nosso destino.

Quando minha irmã mais nova morreu, só restávamos nós dois em casa, então tive que ajudar minha mãe a carregar o corpo. Amarramos cordas em seus pés tão pequenos e a arrastamos para uma cova no quintal, o mesmo lugar em que tanto brincávamos. A casa se tonou ainda mais silenciosa e o buraco em nossos corações mais fundo, o vazio e a perda ecoando por todo lugar. Todos estavam perdendo seus ententes queridos, estávamos apenas a espera de quem seria o próximo.

Acredito que Agnes fazia parte do grupo de pessoas que não foram afetadas, que de alguma forma eram imunes, por um instante achei que seríamos nós dois no fim, porém a doença me prendeu em uma cama também. Sofri por quase uma semana, a febre queimando em meu corpo, a dor dilacerante, o sangue escorrendo e o inchaço por todos os membros e tronco, além de um estranho cheiro doce no ar.

A última coisa que guardei da noite da minha morte foi a voz da minha mãe, ela puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado, então começou a cantar para mim, um acalento em meio a dor. Morri dias antes de completar 13 anos.

A história desse vilarejo hoje é bem conhecida e se tornou um ponto de turismo, mas nunca me atrevi a voltar para aquela casa. Não acho que conseguiria viver da mesma maneira se voltasse, uma coisa é ter essas velhas lembranças, que podem ser difíceis de acreditar às vezes, outra é ir até o local de origem delas e ver as ações do tempo no lugar. Certas emoções não são feitas para um homem experimentar ou reviver.

Há anos decidi ir aos poucos enterrando o passado ou poderia acabar enlouquecendo, as lembranças machucavam demais.

Na terceira reencarnação encontrei um alívio para dor.  

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