PRÓLOGO

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Estou com medo do que tem dentro da minha cabeça
O que há dentro da minha alma
Eu sinto que eu estou correndo, mas sem chegar a lugar algum
O medo está me sufocando, eu não consigo respirar
Eu sinto que estou me afogando, estou afundando cada vez mais

City of the Dead - Eurielle

Islington, Londres
Outubro de 2023

— Bom dia, Heitor. Apenas um café, certo?

— Bom dia, Ava. Sim, por favor — a jovem garçonete ruiva mostra um sorriso simpático e sai para preparar o meu pedido. Olho para o relógio em meu pulso que marca exatamente seis horas da manhã. Tenho o costume de visitar o Lane's sempre que posso para tomar um café e relaxar, é uma cafeteria pequena e aconchegante, poucos metros de distância da escola onde ministro a disciplina de História Geral para adolescentes do ensino médio, em sua maioria desinteressados. Aproveito alguns instantes de tranquilidade antes de caminhar até o meu serviço.

Me recosto na cadeira e respiro fundo o ar fresco do outono. Prefiro sentar do lado de fora do estabelecimento, para aproveitar a brisa e me sentir menos sufocado cercado de outras pessoas, não que eu seja introvertido ou antissocial, mas não gosto de lugares muito cheios ou apertados, além do barulho de vozes e conversas desconexas atrapalhando meus pensamentos.

Quase todos os dias me sento aqui, tomo meu café da manhã e vou para o trabalho, em seguida direto para casa após o turno, normalmente fazendo hora extra ao corrigir trabalhos e provas, então descanso o resto da noite, repetindo tudo no dia seguinte. Às vezes é difícil acreditar no quanto minha rotina é normal. Observo ao redor em um silêncio pesaroso enquanto memórias invadem minha mente.

Sou um homem comum, nascido e criado no Brasil, dentro da classe média de Brasília, em 21 de setembro de 1997, tenho atualmente 26 anos e até minha aparência, cabelos e olhos escuros, passa despercebida na multidão. Minha família é composta apenas pela minha mãe e irmã mais nova. Tive uma boa infância e adolescência, depois de me formar decidi estudar História, cumpri minha licenciatura, fiz estágio e lecionei por dois anos em uma escola privada. Então tive a oportunidade e incentivo para tentar trabalhar no exterior e decidi fazer isso, já que possuo o domínio da língua inglesa e tirei um tempo para estudar mais profundamente sobre a História da Inglaterra e do Reino Unido.

Foi uma grande dor de cabeça no início, confesso. Mas agora, quase um ano depois, posso dizer que não me arrependo de ter tomado essa decisão.

— Aqui está — Ava apoia a xícara na mesa circular, juntamente com um pedaço de bolo que eu não pedi — Por conta da casa — ela explica sorrindo ao ver minha expressão confusa e sai antes que eu possa agradecer. Esse simples gesto acaba por me fazer sorrir e tomo um gole do café saboreando o gosto meio amargo, pego o garfo apoiado no pires e corto um pedaço do bolo. Laranja, um dos meus sabores favoritos.

Olho para rua movimentada e suspiro. Gosto da minha vida atual e da sua calmaria, acho que se pudesse mudar algo, seria apenas uma coisa: Minha memória.

Pois em piscar de olhos os carros que passam velozes pela rua são substituídos por carruagens lentas puxadas por cavalos cansados, as pessoas apressadas perdem suas roupas modernas sendo trocadas por vestidos pesados, casacos grossos e gravatas apertadas, o andar se torna mais lento e seus celulares transformam-se em sombrinhas ou cartolas. Por um breve momento, o passado se mescla ao presente.

Pisco mais uma vez e as vozes tornam-se mais altas e agudas até se assemelharem a gritos, sinto o cheiro de lama mesclado ao tabaco e a fumaça, as buzinas ecoam em meus ouvidos tão altas quanto estouros de armas, minhas roupas se tornam turvas, ficando mais leves e sujas, adquirindo um padrão...

Sacudo a cabeça rapidamente e aperto minhas mãos em punhos. Fecho os olhos fazendo com que as imagens sumam e respiro fundo mais uma vez, fico assim por um minuto até meus ombros relaxarem. Abro os olhos e estendo a mão para xícara ignorando o seu leve tremor, tomo um longo gole da bebida quente e sinto-me mais calmo. Corto outro pedaço do bolo e deixo meu olhar vagar novamente.

Como disse, sou um homem comum, mas tenho uma maldição: Lembro das minhas vidas passadas.

Mais especificamente, já tive outras seis vidas, pelo menos são as que me lembro.

Já tive diferentes nomes, nacionalidades e gênero, além de outras seis datas de aniversário e de morte. Não sei por qual motivo tenho essas memórias, o porquê as mantive gravadas em minha mente e alma.

Já desisti de entender também.

É fato que vivi mais de 120 anos. Vi de perto épocas e situações que hoje ensino em minhas aulas.

Minhas lembranças não são totalmente nítidas, nem lembro com clareza exata todas as minhas vidas, é como se minha alma tivesse decidido armazenar detalhes ou momentos mais específicos e outros tornam-se cada vez mais embaçados com o tempo. Não que eu queira guardá-los também, desejo todas as noites que essas recordações sumam de uma vez e que na manhã seguinte, quando eu abrir os olhos, serei apenas mais uma pessoa normal, vivendo um dia após o outro. Claro, é um desejo idiota, já que quase todas as noites sou assombrado por memórias infelizes.

Já cogitei hipóteses do porquê sou assim e pesquisei muito sobre outras pessoas que dizem se lembrar de suas outras vidas, mas continuo sendo diferente. Existe um padrão: começo a lembrar de tudo a partir dos 10 anos de idade, em todas as minhas vidas foi assim, antes disso sou como todas as outras crianças.

Talvez não fosse tão ruim se minhas lembranças passadas não fossem tão trágicas, repletas de perdas e mortes prematuras, vozes e rostos que insistem em me assombrar e a dor fantasma que se agarra ao meu corpo. Pergunto-me como ainda me mantive são, apesar de ficar constantemente desconfiado, olhando por cima do ombro como se a morte andasse dois passos atrás de mim, apenas esperando para me reivindicar novamente e me lançar em outro ciclo infernal.

Felizmente minha sétima vida parece ser diferente e tenho tido a chance de viver tranquilamente até agora.

Termino o bolo e dou um último gole na xícara, tiro algumas notas do bolso e coloco embaixo do pires, pagando o suficiente pelo café e deixando uma gorjeta para Ava.

— Ava, já estou indo! — aviso enquanto me levanto

— Bom serviço, professor — ela se despede com um aceno enquanto anota o pedido de outra mesa

— Para você também — aceno com a cabeça e saio andando em direção a escola.

Tomo um ritmo lento já que ainda tenho tempo antes do horário da minha primeira aula. Apesar de mais calmo, continuo melancólico.

Queria que minha primeira lembrança fosse algo bobo de criança, como um passeio marcante, uma memória afetiva de uma cena em casa com a família, ou até que fosse comendo terra. Qualquer coisa.

Mas não.

Minha lembrança mais antiga é o cheiro de pólvora e sangue. 

Terceira ChanceOnde histórias criam vida. Descubra agora