Talho

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JAMES GANCHO

Com a Sombra da Vida da Terra do Nunca trancafiada em uma caixa, voltei pra casa com um enorme sorriso. Eu queria muito mostrar para Lilly a minha conquista. Mesmo que eu não soubesse porquê. Eu queria ganhar um de seus pequenos sorrisos e que ela me dissesse algo.

Não a encontrei na sala principal, na cozinha ou na varanda. Então fui tomar um banho. Está tarde, é alta madrugada. Ela deve ter se recolhido.

Além do mais, eu preciso planejar como será a próxima noite. E meu fatídico encontro com Pan. Algo que não ocorre há, provavelmente, décadas humanas.

Fui buscar uma jarra de água depois do banho, e encontrei Smee sentada na varanda. Então me uni a ela, e nos perdemos madrugada a dentro, discutindo tudo o que faríamos. O que não permitiu nos recolhermos para descansar foi a chegada de Tilly.

Ela teve um quê hostil para Smee, e eu não gostei nada disso. E foi muito pior quando Lilly desceu as escadas.

Ela está com um vestido de verão, de linho alaranjado terroso, com botões dourados e uma corrente dourada marcando sua cintura, como um cinto. Ela também usava argolinha douradas nas orelhas, que estavam visíveis graças aos cabelos cinzentos presos por um palito de osso.

Ela ignorou Tilly e os fae completamente. Cumprimentou Smee e a mim, e foi para a cozinha, preparar café. Vi Tilly engolir seco.

Preciso admitir que há algo muito errado com a Rainha dos Fae. Sua pele está seca, repuxada, seus cabelos secos, quebradiços e sem volume. Suas unhas estavam todas rachadas e opacas. Seus olhos estavam levemente esbranquiçados e estavam emoldurados olheiras azuladas e palpebras arroxeadas. Mas não me lembro de, alguma vez, ter visto, ou ouvido falar, uma Fada doente.

Logo tinha o perfume de algum chá floral. E Lilly trouxe duas xícaras, uma para mim e uma para Samira. Quando ela foi se afastar, segurei sua mão, ganhando os olhos verdes. Eles tinham um brilho divertido e travesso. E atiçaram minha curiosidade.

-Pegue sua xícara e venha pra mesa. Por favor...

Ela deu um risadinha.

-Tilly, com certeza, não me quer à mesa de negociações. Deve estar com muito medo de ter que comer sapos ao invés de fadas da próxima vez que fizer uma gracinha.

Ela me deu uma piscadinha, e eu soltei sua mão, vendo-a caminhar de volta para a cozinha, com seu andar felino e sua risadinha silenciosa movendo seus ombros. Tilly ficou pálida. Finalizamos os planos e ela se retirou com seus homens. Iria retornar ao findar da tarde, para pegarmos Peter Pan de surpresa.

Smee foi conversar com os Piratas um momento, repassar o plano, e eu me servi de mais chá, indo a sacada, onde Lilly estava, com os pés suspensos. Me acomodei ao lado dela.

-Então... Amaldiçoou a Rainha dos Fae?

Ela deu uma risadinha, colocando a rebelde franja cinzenta atrás da orelha.

-A família do meu pai tem um grimório de 26 gerações. Eu sou a vigésima sétima geração de bruxas da família Sanderson. Minha Bisavó, Mary Sanderson, foi a melhor criadora de maldições da família.

-Você leu o grimório?

-E escrevi nele. Está na minha mochila, na Casa da Árvore. Eu vou buscar minhas coisas lá depois que essa confusão se resolver.

-Acha que Pan vai deixar você entrar lá?

-Eu peço para Vane pegar pra mim.-Ela deu de ombros.-Pan não é tão entupido quanto parece James. Um dia ele vai ter que entender que não é tão poderoso quanto acredita.

Ficamos em silêncio. Lilly com o olhar perdido no horizonte. Smee passou por nós e foi dormir um pouco. Lilly me disse pra dormir também, e que ela chamaria quando o almoço estivesse pronto. Não queria deixá-la sozinha, mas preciso estar em atenção plena esta noite.

•~☠️~•

LILLY DARLING

Me programei para que o almoço estivesse fresquinho às duas da tarde. James e Smee estavam cansados depois da reunião com Tilly. E aquela noite seria um ponto decisivo.

"Apesar disso, você está certa de que as coisas ocorrerão dessa forma... Por quê?"

Gosto cada vez mais da Sombra da Morte do Nunca. Apesar do peso de seu nome, ela é humorada. E me faz companhia durante meus pesadelos.

"Acho que tudo tem se encaminhado para que Peter recupere a Sombra da Vida. Você sabe... No fim, acho que muita gente coloca energia nisso, conta com isso, reza por isso... Magia é energia... E mesmo que a Sombra da Vida não o queira como hospedeiros mais... Algumas coisas vão além de nossa vontade."

"Você poderia convencer a Sombra da Vida sobre James."

"Sabemos que não é verdade. James sequer tem a intensão de reivindicar a Sombra da Vida. Se o tivesse teria tentado. Bom... De qualquer modo, também precisamos esperar o anoitecer."

"E não se preocupe, minha criança. Qualquer problema, eu a protegerei."

"Eu sei. E sou grata por seu zelo."

Chamei Smee primeiro, para que ela tenha tempo de se aprontar para descer e almoçar. Fiz um cardápio leve, afinal eles acabaram de compensar o sono da noite. Então fui acordar James.

Me sentei na cama, meu quadril ficando na mesm altura que o dele. Mexi naqueles macios e pesados cachos negros. Tão bonitos... Sempre limpor e com um gostoso cheiro de óleo de algodão e seiva de cedro.

-James?-Chamei baixinho.-Hora de comer... Sei que está cansado, mas precisa acordar. Não pode estar letárgico ao anoitecer e...

Confesso que não levei mais do que algumas horas de convivência com James para me esquecer completamente de seu gancho. E como um manejador rotineiro de animais silvestres, levei um golpe. Senti o talho se abrir da curva de meu ombro até meu cotovelo, foi quando consegui me afastar o suficiente para sair de seu alcance. James se sentou na cama de sopetão.

Os olhos azuis arregalados, confusos. Ele está grogue de sono. Não sei se ele sabe que me atacou, se sabe que me acertou... Mas ele não precisa lidar com esse sentimento agora. Isto, é claro, supondo que saber que acertou com o gancho causará algum tipo de sentimento. Então usei um rápido feitiço de limpeza, para que sangue desaparecesse do gancho e dos lençóis. Antes que os olhos James perdessem o ar débil.

-Lilith?-Ele bochejou, e imediatamente tapou a boca com a mão.-Tudo bem? Que horas são?

-Por...-Engoli o esbargo da voz antes de continuar.-Volta de duas e cinco da tarde... Vem almoçar?

-Eu... Claro, claro! Num instante.

Esperei ele levantar de virar de costas para sair do quarto. Puta merda, que dor. Meu braço lateja. E latejando uso magia para suturar o corte. Magi tem limites, e admito que não estudei magia curativa com a devida atenção e afinco... O farei logo tudo se resolva.

E escolhi uma vestimenta que escondesse a sutura. Não quero que vejam o que aconteceu. Posso lidar com isso. Ao menos... Prefiro acreditar que sim.

Como na Terra do NuncaOnde histórias criam vida. Descubra agora