28. Barco

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Lia

"Eu sempre vou te escolher, Lia Jones".

Encaro meu reflexo na porta de vidro do armário da cozinha, enquanto as palavras de Anna perambulam pela minha cabeça em um looping ininterrupto.

Tenho vontade de chorar. Penso no quanto eu gostaria de ser apenas uma garota comum, com alguma história engraçada sobre ter se lambuzado de espaguete numa viagem à Itália, ou cujos pais são vendedores ambulantes de bijuteria na praia. Mas, não bastasse minha antiga vida de vícios nos subúrbios para sustentar a casa de Clementine, todos os dias vou para a cama assombrada pelo mesmo pensamento:

Saí do útero de uma criminosa.

Isso sempre me causou um medo inconsolável. Perdi a conta de quantas noites, quando era criança, eu dormia sentada na janela, com a cabeça apoiada nas grades, esperando pela minha mãe. Dezenas de madrugadas maldormidas até finalmente me dar conta de que ela não voltaria.

Mas, agora, se eu tenho alguma certeza, é de que eu vou acabar com isso.

Hoje o clima está quente, e só quando piso porta afora percebo que a jaqueta puffer não foi uma boa ideia. Tiro ela do corpo e entro no carro com o sol atingindo meus ombros expostos. Abaixo o quebra-sol para me olhar no espelho e prendo o cabelo num coque alto.

Encaro meu reflexo, e, ah!, eu sou terrivelmente parecida com ela.

"Aguenta aí, Olivia Foster...", viro a chave e dou partida, "...ou devo dizer... Cecília Jones?"

Meto marcha e passo no drive thru do Mc Donald's ao som de "I'm A Believer", dos Smash Mouth.

"Não temos de morango", o rapaz do balcão lamenta, seus cílios postiços enormes e unhas de fibra de drag queen popstar contrastando com a sua voz incrivelmente grave.

"O quê?!", praticamente surto, apertando o cenho entre os dedos, "Como a maior rede de fast food da América não tem milkshake de morango?!"

"Péssimo, né?", ele revira os olhos, "Com o salário que o patrão ganha, daria pra plantar umas quinze hortas de morango."

Isso me tira um riso.

"Mas eu tenho pistache.", ele continua.

"Tenho mau pressentimento sobre bebidas verdes."

"Garanto que é melhor do que parece."

" 'Melhor' tipo 'pelo menos não é radioativo' ?"

"Tá mais pra 'melhor' tipo 'eu nunca mais vou olhar feio pra uma couve'."

A gesticulação dele faz as pulseiras cintilantes balançarem.

"Certo...", olho para o crachá.

Rony Madonna. Poucas coisas me surpreendem, mas 'Rony Madonna' está além dos meus limites. Eis a maravilha criativa do nome social.

"...Rony."

"Eu tenho nome composto!", ele ergue uma sobrancelha, com algo no olhar que exala humor.

"Rony Madonna...", comprimo os lábios para segurar um riso, "...meu dia está meio caótico hoje. Só... me surpreenda, ok?"

"Não precisa falar mais nada", ele dá uma piscadela e deixa o balcão por um tempo, inclinando a cabeça cozinha adentro para murmurar algo aos funcionários de touquinhas de pano.

Espero por alguns minutos batucando no volante, ao ritmo de "Summer", do Calvin Harris, até Rony Madonna aparecer de novo.

"Aqui", ele me entrega um copo médio que transparece uma mistura intercalada de camadas amarelas e vermelhas.

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