Anna
Ok, não pode ser tão difícil. Eu só preciso decorar algumas fórmulas. Química nunca foi o meu forte, mas cá estou, sem opção a não ser a redenção ao sacrifício: exercícios da apostila. Repetir o último ano da escola era só o que faltava pra completar o grande drama que é a minha vida.
Não seria bom se tudo na vida pudesse se resumir a fórmulas? Modelos prontos de resolução em que é só aplicar e voilà! É que as pessoas são tão diferentes umas das outras, então provavelmente uma única fórmula não atenderia todos ao mesmo tempo. Algumas pessoas são ímãs, outras são as peças de ferro que são atraídas.
Argh... essa matéria me dá dor de cabeça. Quero me deitar, mas ainda são 16:45 e eu sei que se eu deitar, vou dormir que nem pedra. E isso pode acabar com o meu sono da noite. Isso sim me dá medo. Preciso de um astral. Algo tão incrível e simples que quando me vier à mente vou achar ridículo.
Claro, café.
Não estou podendo gastar, mas pra um cafezinho dá, eu acho. Isso sem pedir o chantilly extra, é claro. Ou vou falir. É, sinto falta de trabalhar, mas esse ano achei melhor me dedicar às fórmulas, só pra garantir que meu fim não vai ser na rua conversando com pombos. [Nada contra fazer amizade com pombos, eles são de fato menos complicados que as pessoas].
Bem, partiu. Fica a três quarteirões daqui.
Visto meu moletom lilás, pego minha bolsa de couro preta com um broche do Queen e saio a passos largos pelas calçadas agitadas do bairro. Hayes Valley é relativamente vasto, mas não há tantas cafeterias por aqui a ponto de acabar confundindo.
Caminho tranquilamente até me familiarizar com a porta de correr de vidro amarelo-claro. Ouço o badalo do sininho ao entrar, mirando de longe o cardápio digital com as promoções do mês.
"Especiais Coffeeners de setembro".
Me aproximo do caixa para fazer o pedido.
Qual está mais de acordo com o meu humor de hoje? Algo nem muito amargo, nem doce demais. Na medida...
"Boa tarde, me vê um..."
"Cappuccino duplo com caramelo e sem chantilly extra." *duas pessoas falando simultaneamente.*
É só impressão minha ou é extremamente raro duas pessoas fazerem o mesmo pedido e ao mesmo tempo?
Olho de relance para a esquerda. Baixa, cachos curtos, o mesmo casaco verde-oliva, a boca em formato de "M". Ela, a garota do milkshake. Quer dizer, a "garota do milkshake" sou eu, diria que ela está mais para a vítima do milkshake. Sinto minhas bochechas queimarem. Ao perceber que ela também me viu, arregalo os olhos e me volto para a frente.
"Você também gosta de caramelo?", ela dispara.
"Humm... sim?".
Caramba.
Pigarreio e limpo a voz: "Gosto sim".
"Ideal, não acha? Nem muito amargo, nem doce demais. Esse é meu pedido habitual", continua, abrindo um sorriso neutro.
É como se ela conseguisse enxergar meu humor através dos meus olhos. Ou porque estou com olheiras enormes e parecendo um panda exausto.
A voz grave dela abala meus tímpanos de uma maneira surpreendentemente agradável. Não tinha percebido isso da última vez, provavelmente porque eu estava muito preocupada em sentir vergonha pelo acidente.
Sorrio com o pensamento.
"É o meu também. Não peço café puro porque me dá dor de cabeça", respondo.
"É o meu caso com chantilly. Parece estranho, mas acho chantilly mais enjoativo do que caramelo. Me deixa bem enjoada."
"Por isso prefere suco a milkshake?"
"É, na maioria das vezes, sim.", ela ri, "Mas dá última vez que nos vimos eu acabei levando milkshake mesmo."
"Desculpa, sou muito desastrada", não consigo evitar o riso.
"Não esquenta. Naquele dia eu estava meio desanimada, acho que só precisava de um susto engraçado. "
"E a sua jaqueta?"
"Novinha em folha. Nada que um amaciante não resolva".
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Paixão & Café
RomansaSan Francisco é quase tão grande quanto o dom de Anna para esbarrar nas pessoas. Em uma cidade tão ampla e populosa, um encontro ao acaso é quase impossível de se repetir. Bem, isso quando a outra pessoa não tem o dom natural de atrair desastres, co...