16. Rodovia

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Lia

Parece um sonho. Daqueles que, mesmo sendo uma anestesia, trazem um sentido real para muitos aspectos. É tão prazeroso apreciar esse momento com Anna, tão previamente improvável que, por um momento, me faz desacreditar. As luzes dos postes, o céu de fim de tarde pincelado com cores vivas mescladas, o barulho do motor preenchendo meus ouvidos - tudo tão proporcional à tamanha emoção que me invade nesse momento, que por um fio não perco a concentração na direção da moto. Na minha cabeça, tocam trilhas sonoras que variam entre "505", do Arctic Monkeys, e "Harleys in Hawaii", da Katy Perry - melodias que, agora na presença de Anna, consigo associar a um passeio romântico como nenhuma outra música.

É, e no final das contas, apesar de eu ter dito que tenho juízo o suficiente para não sair com uma moto roubada... aqui estou eu. Colocando minha vida em jogo por uma aventura, como sempre. Mas o que pode dar errado? Será perfeito.

Com o olhar mirando a rodovia adiante, sinto a cabeça de Anna se acomodar nas minhas costas, suas mãos entrelaçando-se firmemente no meu abdômen e seus braços me envolvendo como uma parreira de uvas. Meus cachos se agitam ao vento e a ideia de estar apoiando coturnos de salto alto nas pedaleiras me traz um senso de poder. Meus dedos repletos de anéis e com as unhas pintadas de preto envolvem os guidões com firmeza e ambição para acelerar um pouco mais a cada dois minutos. Lentamente, as mãos de Anna se movem para as laterais da minha cintura, fazendo-me prender a respiração por alguns instantes. Em seguida, ela cuidadosamente abre a viseira do capacete, e grita algo que não consigo entender, por causa do barulho.

"O quê?!", grito mais alto ainda.

"Cuidado! Minha vida está nas suas mãos!"

Ah! Agora entendi.

"Bem, estamos quites!", tiro uma mecha de cabelo do meu rosto, "Meu coração está nas suas mãos, Anna Bittencourt!"

De alguma forma, mesmo com vários carros passando a 80 km/h do nosso lado, ela consegue entender o que digo. A prova disso é que, logo após, ela volta a me abraçar com ainda mais intensidade, levantando uma das mãos para fazer carinho na minha nuca, com a outra mão ainda segurando minha cintura. Seu toque delicado com as pontas dos dedos me desperta um arrepio que percorre todo o meu corpo.

Estamos quase chegando. De todos os possíveis lugares aos quais pensei em levar Anna, escolhi um que, por mais simples que seja, acredito que possa constituir um cenário adequado para um beijo lésbico clichê.

"Chegamos", afirmo, descendo da moto depois de Anna.

Trata-se de um gramado extenso na beira de uma rodovia, com uma cerca branca que separa a área em que estamos de uma estrada metros abaixo. Da cerca, é visível uma paisagem que exibe uma grande parte de San Francisco - luzes, prédios e carros por toda parte. Seria um lugar terrivelmente deserto, não fosse o posto de gasolina com uma loja de conveniência a dez minutos a pé daqui.

A Harley fica estacionada debaixo da árvore grande que nos separa da rua. Anna me entrega o capacete, que eu penduro nos guidões da moto.

"Uau...", ela se deslumbra, olhando em volta e ajustando a saia, que ficou encolhida depois do passeio.

"Olha, sei que não é grande coisa, mas pensei que aqui a gente...", ela me interrompe, tampando minha boca com as pontas dos dedos.

E então, Anna me beija.

Seus lábios grossos puxam os meus com desejo, e não demoro muito para sentir um notável gosto de cereja misturado com um leve toque da guacamole que comeu mais cedo - o que, na teoria, é de se imaginar que seria um gosto desagradável, porém a sensação de beijar essa garota eleva meu espírito a tal ponto que não consigo mais distinguir entre a boca dela e um cubo de açúcar.

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