A sensação de aconchego e segurança de chegar em casa após um longo dia na rua. É isso que sinto quando chego em Valeiros. Parece que só aqui consigo respirar naturalmente.
Ao descer do carro, meu coração bateu mais forte ao avistar a casa onde passei minha infância. A fachada amarela suave, com suas janelas brancas e vasos de flores coloridas, exatamente como eu lembrava. O telhado de telhas de barro, um tanto desgastado pelo tempo, dava um charme rústico à construção.
Nossa mãe veio nos receber em frente à casa, com um sorriso caloroso. Seus cabelos curtos e loiros brilhavam à luz do sol, e seus olhos castanhos muito claros mostravam uma mistura de saudade e alegria.
Tudo normal!
Nossa mãe nos ajudou a carregar as malas para dentro. Na minha, algumas calcinhas, duas calças, quatro camisetas, um casaquinho leve e três livros pesados. Na da minha irmã, todos os produtos cosméticos sem os quais ela não vive e dezenas de opções de looks pra usar em ocasiões que nem vão existir aqui no interior nessas 2 semanas. Além de botas de cano alto e camisas de flanela que ela acha que vão ser adequadas para passar alguns dias na fazenda.
A Bianca chegou da viagem morrendo de sede, entrou em casa às pressas e foi direto para a cozinha tomar água.
Eu entrei depois com a mamãe, dei uma boa olhada ao redor e senti o cheiro de café recém-passado. Estava tudo tão... normal! Excelente!! Tirei os tênis e me joguei na poltrona em que li tantos livros no passado. Estiquei as pernas, apoiando os pés sobre a mesinha de centro da sala de estar.
Foi aí que ouvi o familiar estalo que os degraus da escada de madeira fazem quando alguém sobe ou desce. Estranho... minha mãe mora sozinha desde que o papai se foi.
Levantei em um pulo quando vi o cara que estava ali, descendo as escadas, de shorts e camiseta, os pés descalços. Parecia se sentir em casa, até mais do que eu. Um senhor, na verdade. Devia ter uns 60 anos, idade parecida com a da minha mãe. "O que está acontecendo?", pensei.
— Você deve ser a Isadora, acertei? — ele me olhava com uma expressão curiosa.
Reparei em mim mesma: em pé atrás da poltrona, com os braços cruzados em frente ao peito, bochechas bem coradas, mandíbula cerrada e olhos arregalados. Logo saquei que ele, seja lá quem fosse, já sabia tudo sobre mim e percebeu meu jeito em dar de cara com um desconhecido assim de supetão.
Antes que eu pudesse responder, ouvimos um barulho de vidro quebrando, vindo da cozinha. Logo em seguida veio a Bianca balbuciando:
— Tem um.. tem um... GATO... enorme... na cozinha.
A mamãe sorriu e disse, olhando para o senhor ao pé da escada:
— O filhote de gato na cozinha é o Guido, e o gatão na sala é o dono dele. Meninas, conheçam o Antenor, meu namorado.
A Bianca começou a rodar a baiana, falando palavras que não formavam frases completas, andando rápido em direção à saída da casa. Chegando na porta, deu meia volta e caminhou com passos firmes até as nossas malas, pegou cada uma em uma mão e voltou a andar para a porta. Novamente, perto da porta, girou, dessa vez olhando para mim.
— Você não vem? — disse, com olhos fulminantes.
Eu não tive opção a não ser ir, então saímos com as malas e entramos no carro.
— Eu não tô ACREDITANDO!! — minha irmã berrava dentro do carro.
— Neu eu — eu sentia meu queixo tremer e as lágrimas surgirem nos olhos.
— Ela deixou um GATO entrar em casa e não teve a MÍNIMA consideração em PELO MENOS me avisar antes que eu desse DE CARA com o BICHO!!!
— Namorado? A mamãe tem um... namorado? Ele mora com ela? — uma dor surgir no meio do meu peito.
— O gato mora na NOSSA casa?
Comecei a chorar com as mãos no rosto, enquanto ouvia os gritos raivosos da Bianca. A nossa mãe com um cara totalmente desconhecido dentro de casa e a minha irmã preocupada com o gato!
Levantei o rosto para enxugar um pouco as lágrimas e tomei um baita susto quando vi a cara da mamãe na janela do carro. Sim, ela estava ali assistindo nosso show e... rindo?!?!
Atrás dela, uns quatro passos mais longe, o cara, com o gatinho no colo.
A Bianca viu minha cara de espanto, olhou pelo vidro do carro e também viu nossa mãe. Com muita raiva nos olhos, ligou o carro e saiu cantando pneu. Comecei a chorar com mais intensidade, agora também com medo da direção ofensiva, e segurei firme no banco. Olhei pelo retrovisor e vi minha mãe, o cara e o gato no meio da rua, preocupados.
A situação não podia ser pior. Mas ficou. Paramos no sinal vermelho, já no centro da cidade(zinha) e quem atravessou a rua em frente ao nosso carro? Gabriel. Era só o que faltava. Não adiantou nada eu me encolher toda no banco, ele reconheceu minha irmã ao volante e veio falar com a gente.
Que-ver-go-nha! Primeiro porque eu não falava com ele desde aquela fatídica troca de mensagens. Segundo porque eu estava um nojo depois de tanto choro: nariz escorrendo, olhos inchados, cara toda vermelha e o cabelo eu nem sei descrever.
Gabriel entrou no carro, sentou no banco de trás e, claro, perguntou o que estava havendo. Chorei mais, contei tudo. Bianca gritou mais, esbravejou. E foi nessa ocasião que eu conheci o Gabriel-psicólogo. Ele nos ouviu, fez algumas perguntas, deu poucas opiniões e no fim estávamos mais calmas. E acabamos concordando em voltar na casa da nossa mãe.
No fim do dia, estávamos os quatro (eu, Nica, mamãe e Gabriel) tomando café, rindo e chorando da situação. Descobrimos que o Antenor (e o gato) não mora com a minha mãe. Ele foi para a casa dele assim que voltamos, para podermos ficar confortáveis enquanto tentávamos entender o panorama.
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Nossos Medos
Ficción General"Nossos Medos" conta a história de duas irmãs gêmeas idênticas. Isadora luta contra uma intensa fobia social que a impede de se relacionar normalmente com as pessoas. Ao longo dos anos, Bianca assumiu o papel de "protetora" da irmã, frequentemente s...