No caminho para a fazenda, enquanto dirigia, a Bianca foi me contando o que ela já sabia sobre o lugar e sobre as pesquisas que fez a respeito de bem estar animal. Achei muito interessante, de verdade, mas as dezenas de perguntas que fiz foram mais para evitar o outro assunto, do que por algum interesse em bois e galinhas.
Quando eu estava tranquila, achando que meu plano de não tocar no assunto "estágio em Valeiros" ia dar certo, o Waze sinalizou que havia um engarrafamento grande logo à frente. Seriam 20 minutos de atraso na viagem. Ruim, mas superável. Só que esses minutos facilmente se transformaram em duas horas com o carro literalmente parado no meio da estrada. Desligamos o motor.
Silêncio dentro do carro. O rádio não sintonizava nenhuma estação. Não havia internet nos nossos celulares para nos distrair com redes sociais ou colocar uma música. E o assunto "fazenda" esgotou completamente.
Normalmente, ficar em silêncio com a minha irmã não é algo constrangedor. Mas dessa vez foi. Tinha um elefante na sala, afinal. Ou melhor, no carro.
Quebrei o silêncio:
— Nica... estou decidida.
— Sobre o estágio? Tranquilo, Isa, a gente vem para Valeiros, são só alguns meses e...
— Não, Nica... me escuta.
Ela me olhou confusa. Séria. Continuei:
— Quero vir sozinha. Você volta para Curitiba.
— Isa, não estou entendendo.
— Conversei com a minha psicóloga. E com o Gabe...
— Ah, tinha que ser o Gabriel colocando minhocas na sua cabeça! — ela me interrompeu. — Isa, eu quero fazer isso, quero vir passar um tempo com a mamãe, com você, longe da cidade grande, aquietar um pouco.
— Não quer não, você quer estar perto de mim, e eu entendo. Nunca ficamos longe, é esquisito. Mas eu preciso dar esse passo. Sair da zona de conforto.
— Isa, não existe isso de sair da zona de conforto, isso é papo de coach motivacional, baboseira!
— Bianca, não tenho coach, mas sim psicóloga. E estou levando a terapia muito a sério. Você me incentivou a fazer, não foi? Então! Não tem outro jeito, se eu quero superar a minha... — eu tinha medo de falar as palavras que tinha aprendido — ansiedade... fobia... vou precisar encarar os desafios, tomar decisões, e lidar com as consequências delas.
Meu coração estava apertado ao falar essas palavras. Eu estava mesmo fazendo a tarefa de casa. Na teoria, eu já tinha entendido tudo. Precisava encarar! Mas na prática... bom, na prática a teoria é outra.
A Dra. Rafaela havia me explicado muitas coisas. E todas faziam sentido. Eu precisava confiar no processo, tomar coragem e seguir em frente. Doía pensar em fazer isso, mas era necessário, eu já tinha entendido.
O primeiro passo era o tal "sair da zona de conforto". O que não significava subir em um palco e dançar na frente de uma plateia. Não, no meu caso, seriam algumas pequenas ações, que para a maioria das pessoas era a vida normal: cumprimentar um desconhecido, pedir pão na padaria, perguntar na livraria se um livro específico está disponível... coisas que eram muito mais difíceis de fazer quando a minha irmã estava perto, fazendo tudo por mim.
A Bianca se calou, acho que estava pensando algo como "agora não é a hora de conversar sobre isso, mais tarde eu penso em alguma coisa para convencê-la". Eu também me calei, não havia mais muito o que dizer.
O trânsito voltou a andar, para alívio de ambas.
Ao sair da estrada de asfalto e entrar na estradinha de chão que levaria até a fazenda, nós duas continuamos em silêncio, admirando aquele ambiente tão diferente do que estamos acostumadas. Passamos por um trecho com muitas árvores nas laterais da estrada, lindo. Depois tinha uma parte mais aberta, cercada de plantações, olhei para os lados e percebi o quão longe a gente podia enxergar, tudo tão verde! O cenário mudou ligeiramente mais uma vez, dessa vez mostrando pastos extensos com animais pastando, tranquilos.
Quem não parecia tranquila era a Bianca. Estava segurando o volante com força, diminuiu ainda mais a velocidade, certamente tentando prolongar aquele momento no carro e adiar a chegada ao nosso destino. Conheço bem essa estratégia.
Comecei a sentir aquela dor de barriga, já esperava por isso. Sempre que estou chegando a algum lugar desconhecido, onde haja pessoas desconhecidas, tenho essa sensação de que meu intestino está se revirando, tentando fazer um nó.
Após uma curva suave, tivemos o primeiro vislumbre da fazenda. A Bianca virou o volante lentamente e passamos pelo portão de madeira todo adornado com detalhes rústicos, que estava aberto quando chegamos. O portão abria um caminho de cascalho ladeado por árvores estrategicamente posicionadas para limitar a visão de quem estava fora. Tudo muito bem cuidado e mais imponente do que eu teria imaginado. Eu e a Bianca ficamos tão encantadas com aquela entrada, que esquecemos por alguns segundos os nossos medos e inseguranças.
Quando aquele pequeno caminho terminou, pudemos ter uma ideia do tamanho da propriedade, que se estendia em todas as direções, com campos verdes de perder de vista.
— Nenhum animal, por enquanto — a Bianca pareceu sair do transe, quebrando o silêncio.
— Exceto pelos patos no lago, olha ali que cena mais fofa — tentei deixar o clima leve, apontando para os patinhos nadando em fileira, atrás daquela que certamente era a senhora pata-mãe.
Contornamos o lago e nos aproximamos de uma grande construção, uma casa térrea com paredes revestidas em pedras rústicas e uma grande varanda que se estendia por toda a fachada frontal e lateral. A Bianca estacionou em frente à entrada principal, desligou o carro .
Fechei os olhos e respirei fundo. Quando olhei para minha irmã, vi que ela estava fazendo a mesma coisa.
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Nossos Medos
Ficción General"Nossos Medos" conta a história de duas irmãs gêmeas idênticas. Isadora luta contra uma intensa fobia social que a impede de se relacionar normalmente com as pessoas. Ao longo dos anos, Bianca assumiu o papel de "protetora" da irmã, frequentemente s...