Capítulo três.

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Então eu obedeço,não posso continuar evitando o cara pelo restante da vida.Assim respiro fundo e levanto os olhos...

E o que vejo me deixa incapacitada de falar,piscar ou mover qualquer parte do corpo.
Percebendo meu estado,Ajax arregalas os olhos e começa a abanar as mãos freneticamente,fazendo o que pode para aborta a missão de me trazer de volta ao "quartel-general" à normalidade.Mas não posso.Quer dizer,bem que eu gostaria,porque sei que estou agindo exatamente como a esquisita que todos já acham que sou.Mas não dá, é impossível.

E não apenas por causa da beleza inquestionável da tal Wednsday.Tudo bem,os cabelos são lindos, luminosos e compridos;vão descendo ao longo das maçãs do rosto,salientes e esculpidos a castanhos, até roçar nós ombros.Mas quando ela ergue os óculos de sol para me fitar de volta,constatou que os olhos delas, estranhamente familiares, são amendoados e escuros,emoldurados em cílios tão longos que quase parecem falsos. Ah, e os lábios! Os lábios são carnudos e convidativos,tão bem desenhados quanto o arco de Cupido. E o corpo que sustenta tudo é um pouco mais alto que eu,magra,firme. Vestida de preto de cima a baixo.

-Ei,Enid! Alô-ou! Você pode acordar agora.Por favor!- Ajax vira-se para Wednsday,rindo de nervosismo. -Nao repare na minha amiga, não.Geralmente ela se esconde debaixo do capuz.

Não é que eu não saiba que tenho que parar,e parar agora. Mas os olhos de Wednsday,pregados nos meus, vão se tornando de um colorido cada vez mais intenso à medida que os lábios esboçam um sorriso.Mas,como já disse, não é beleza estoteante dela que me paralisa dessa forma. Um fato não tem nenhuma relação com o outro. Acontece que toda área em torno do corpo dela,desde a gloriosa cabeça até a ponta quadrada das botas pretas de motoqueiro,consiste em nada além de um espaço vazio,em branco.

Nenhuma cor.Nenhuma aura.Nenhum espetáculo de luzes pulsantes.

Todo mundo tem um aura.Todos os seres vivos têm espirais de cor que emanam do corpo. Um campo energético multicolorido do qual nem se dão conta. Nada perigoso ou assustador,nem ruim,de forma alguma,mas apenas parte de um campo magnético visível-bem,ao menos para mim.

Antes do acidente,eu nem fazia ideia de coisas assim.E, definitivamente não era capaz de vê-las.
Mas,desde que acordei no hospital,vejo cores por toda parte.

-Tudo bem com você?-perguntou a enfermeira ruiva, preocupada.
-sim,mas por que você está rosa?-respondi,sem entender o porquê daquele brilho rosado que a cercava.
-Por que estou o quê?- ela se esforçou para disfarçar o susto.
-Rosa.Isso que está aí ao seu redor, principalmente da cabeça.
-O.K.,meu amor,fique aí descansando,que vou chamar o médico.-

Ela me deixou sozinha no quarto e saiu correndo pelo corredor. Só depois de passar por uma bateria de exames oftalmológicos, ressonâncias cerebrais e avaliações psiquiatricas foi que aprendi a guardar minhas visões pra mim mesma. E mais tarde,quando passei a ouvir pensamentos,a captar histórias de vida pelo toque e a conversar com minha irmã morta, já estava escaldada o suficiente para ficar de bico calado.

Acho que já me acostumei a viver assim;nem sequer recordava que existe um jeito diferente. Mas ao ver Wednsday emoldurada apenas no preto reluzente de carroceria de um carro chiquérrimo e caríssimo,acabei me lembrando de outro tempo da minha vida,mais feliz e mais normal.

-Seu nome é Enid,certo?- ela pergunta,enfim abrindo o sorriso esboçado há pouco tempo e revelando mais uma de suas inúmeras perfeições: dentes incrivelmente brancos.

Eu fico ali,inultimente tentando desviar o olhar,enquanto Ajax começa a pigarrear feito um maluco. Só então lembro de quanto ele desteta ser ignorado.

-Ah,desculpe. Ajax, Wednsday, e Wednsday, Ajax- digo,sem ao menos piscar.

Wednsday da uma olhada rápida para o Ajax, cumprimentando com a cabeça e logo se volta para mim. Sei que vai parecer maluquice a minha,mas durante a fração de segundos em que Wednsday desviou o olhar senti uma fraqueza e um frio muito estranhos.

Mas assim que ela vira seu olhar novamente para mim tudo volta ao normal -tudo fica quente e bem de novo.

-Posso pedir um favor?- E sorri.- Será que pode me emprestar seu O morro dos ventos vivantes? Preciso colocar a leitura em dia,e hoje não vou ter tempo de passar na livraria.

Abro a mochila,retiro meu exemplar todo amarfanhado e estendo o braço com o livro na palma da mão,parte de mim torcendo para que a ponta de meus dedos toque a ponta dos dedos dele,enquanto outra parte,a mais forte e sábia,aquela com poderes sobrenaturais,treme só de pensar na revelações que podem brotar do contato com uma desconhecida tão linda.

Ela joga o livro no interior do BMW,baixa os óculos escuros e diz:

- Valeu,a gente se vê amanhã.
Só então percebo que nada aconteceu com aquele breve toque, além de um leve formigamento na ponta dos dedos. E antes que eu possa dizer algo ela já está dando ré pra sair da vaga.

-Amiga- diz Ajax, balançando a cabeça e se acomodando a meu lado no Miata.-Desculpe,mas quando falei que você iria pirar quando visse a Wednsday eu não estava sugerindo que você pirasse. Não era pra você seguir ao pé da letra. Caramba,Enid, o que foi que deu em você? Que esquisitice foi aquela? Só faltou você dizer: muito prazer,eu sou a Enid, a psicopata que vai perseguir você pelo restante da vida! Não estou brincando. Achei que a gente teria de ressuscitar você!

Ajax continua tagarelando sem parar durante todo o caminho. Simplesmente eu o deixo falar enquanto presto atenção no trânsito,roçando o dedo na cicatriz espessa em minha testa-a que escondo debaixo da franja.
Como explicar a ele que,desde o acidente,as únicas pessoas cujos pensamentos não posso ouvir,cujos os toques nada revelam e cujas auras não consigo ver são as que já morreram?

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:)

Para sempre as imortais - Wenclair G!P Onde histórias criam vida. Descubra agora