Jantar

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🩵 Riley's POV

A fragrância da carne preenchia todo o ambiente, junto do perfume enjoativo da mãe de Mei, a senhora Ming Lee. Ela era uma mulher elegante de postura impecável, e a cada gesto parecia prestes a quebrar como se fosse feita de vidro, de tão delicada. Até para cortar os legumes em seu prato, era calma e refinada. Eu me senti uma capivara naquela mesa.

- O que achou da comida? - a senhora Ming perguntou para mim, e estremeci na hora. Não sei o que deu em mim quando aceitei jantar na casa dos pais de Mei. Assim que chegamos no templo da família, eu já queria dar meia volta, mas grudei as solas dos tênis na calçada e esperei que as portas fossem escancaradas.
Esperei do lado de fora enquanto Mei ascendia um incenso e fazia uma breve oração próxima a uma estátua de panda vermelho. Ela estava de olhos fechados e as mãos juntas, concentrada e séria. Nunca pensei que a veria assim um dia. Em seguida, me apresentou seus pais e foi logo ajudando na cozinha. Meio sem jeito, me ofereci para colocar os pratos na mesa.

E agora, na hora do jantar, eu só queria morrer.
Tentei cortar um pedaço de carne, mas a faca não parecia afiada o bastante e apenas serviu para empurrar a comida para fora do prato, derramando um pouco de arroz na mesa. Minhas bochechas esquentam mais que a tigela de Yakisoba na minha frente.

- Delicioso, madame. - eu disse, tentando parecer educada. Por sorte, já estou habituada a mudar completamente minha essência para agradar os outros. Viva eu...

- Então você é a Riley de quem minha filha tem falado? - ela disse. Ouvi Mei Lee engasgar do meu lado. Ela rapidamente alcançou um copo de água e focou nele durante um tempo.

- É, bom, não tem muito o que falar... - eu disse, tímida, o que não era do meu feitio.

- Bobagem! Ela disse que você joga hockey muito bem. Eu particularmente não sou a favor das garotas se envolverem em esportes agressivos assim, mas ela falou tão bem do seu desempenho que fiquei interessada. - ela disse, e eu sorri. Então Mei Lee falava bem de mim para... Sua mãe?

- A senhora pode assistir ao próximo jogo se quiser. Eu jogo nos Falcões, se quiser torcer por meu time.

A senhora Ming limpou os cantos da boca com o guardanapo e o pôs em seu colo novamente, assentindo em seguida. Percebi que a garota Mei havia puxado mais traços físicos de seu pai do que da mãe. Ming Lee era mais ossuda, de rosto fino e lábios pequenos, enquanto o senhor Lee tinha as mesmas bochechas rechonchudas e até o jeitinho para comer dele era semelhante ao da ruiva. Ambos eram canhotos e cheiravam os vegetais antes de comer, algumas vezes faziam isso ao mesmo tempo e era engraçado.

- Só se você aparecer durante o dia para conhecer a história dos nossos ancestrais. O templo fica cheio de gente de todas as classes e raças, todos curiosos sobre nossa origem.

- Mãe, não precisa falar sobre as "cores" das pessoas. É só falar que ficou lotado e deu. - repreendeu Mei.

- Hoje em dia não pode falar mais nada! Tudo é ofensivo! A Riley sabe que não falei com maldade. Certo?

Dei um sorriso amarelo para a mulher.

- Eu adoraria visitar vocês quando o templo estiver aberto ao público. Aposto que é uma homenagem muito bonita. - disse, tentando evitar mais constrangimentos.

Mei Lee e sua mãe trocaram de assunto e começaram a discutir sobre uma novela que elas assistiam juntas e eu nem conhecia. O senhor Lee, que até então comia em silêncio, fez umas perguntas para mim sobre hockey no gelo, e foi com certeza o momento em que mais tagarelei. Foi divertido, no geral. Imaginei como seria a interação de Mei com minha família.

- O tempo parece estar se armando um pouco... - a senhora Ming disparou. - Vi nas notícias que amanhã vai chover bastante.

- Chuva abençoada! Vai regar os meus tomates. - declarou o senhor Lee. Ele tinha cara mesmo de quem cultivava uma horta.

Entretanto, assim que terminamos o jantar e limpamos a cozinha, um temporal se iniciou. A chuva caía tão forte que foi preciso aumentar o volume da televisão para ouvir alguma coisa. Observei pela janela a fonte de cristal no centro transbordar de água e as pobres estátuas ficarem ensopadas. Comecei a ficar nervosa. Mandei mensagem para meus pais explicando a situação, preocupada com minha volta para casa.
Respirei fundo várias vezes, tentando me acalmar. Mei se aproximou e encostou em meu ombro.

- Está tudo bem? - perguntou. Não consegui responder. Tentei beliscar as maçãs do rosto, como se a dor me tirasse daquela sensação. Mei imediatamente segurou minha mão.

- Riley, olha aqui. - ela mandou, e eu obviamente obedeci. - Sabia que o meu animal favorito é o gato?

- Por que você...?

- Cala a boca e escuta. Gatos são tão fofinhos, não são? Sabia que as orelhas dos gatos foram feitas pra girar em até 180⁰ graus?

- Mei, eu... - tentei fazê-la ficar quieta mas não adiantou, ela seguiu falando tudo que sabia sobre gatos. Que as fêmeas davam luz a até 9 filhotes, a altura que eram capazes de pular... De algum modo acabei me concentrando nisso e quando percebi, minha respiração estava regulada.

- Que idiota. Quem fica nervoso assim por um motivo tão idiota? - me puni por ter surtado tão de repente.

- Nenhum motivo é idiota. Cada pessoa sente as coisas do seu jeito. Encaramos a vida de uma maneira, mas às vezes o outro encara de outra porque passou por umas paradas mais sinistras. Não tem como saber. E está tudo bem. - ela disse, me olhando no fundo dos olhos. Sorri e desviei, procurando meu celular. Minha mãe havia me respondido.
Em resumo, além de levar uma bronca feia por ter saído depois do treino, ela havia cavado a minha cova.

"A chuva está forte demais, é perigoso. Pergunte se você pode passar a noite aí". Assim que li a mensagem, a função 'piscar' foi desinstalada do meu corpo.

- Sua mãe brigou com você? - Mei perguntou.

- Pior que isso. Ela não vem me buscar.

Mei Lee nem pensou duas vezes e foi até sua mãe.

- Eu levo ela para casa. - disse o senhor Lee.

- Seu carro não está na oficina? - perguntou a senhora Ming.

- Posso usar o seu. Não posso?

- De jeito nenhum!

Por pouco não fui para casa. A senhora Ming parecia tão neurótica quanto minha mãe em relação à tempestade e se negou a emprestar o carro. Ao invés disso, disse que me emprestaria um travesseiro e um sabonete para eu tomar banho.

Meu. Deus.

Ninguém é como você Onde histórias criam vida. Descubra agora