Para Engfa Waraha, não era nenhuma novidade a discussão acalorada que acontecia do outro lado da parede da sala de seu apartamento recém adquirido. Desde que havia se mudado, há exatos dois meses, era comum ela escutar seus vizinhos brigando.
No começo ela ficou assustada, fora pega de surpresa enquanto estava no meio do processo de limpeza de uma de suas câmeras, uma EOS SL3, e por pouco ela não deixou a lente cair.
Subitamente receosa, sem compreender bem de onde vinham as vozes estridentes que entravam abafadas em sua sala, ela posicionou a lente ef 85mm na mesa de madeira escura que havia comprado naquela semana na Ikea e se levantou, seguindo para a porta. Ela saiu para o corredor estreito e ficou parada, uma das mãos no batente de sua porta, a impedindo de fechar. Apurando a audição, ela tentou identificar de onde exatamente as vozes vinham, e rapidamente percebeu que todo o barulho vinha do apartamento ao lado do seu, de número 503. Duas mulheres, ela notou. Uma falando muito mais alto que a outra.
Engfa sabia que não era de bom tom bisbilhotar, mas algo na voz mais baixa a fez ficar ali no corredor, tão imóvel ao ponto da luz automática apagar, se esforçando para entender algo do que estavam dizendo, mas mesmo ali do lado de fora, nenhuma das palavras ditas foi compreendida.
Repentinamente, porém, assim como havia começado, a altercação terminou. A voz mais alta a finalizando com um último grito, e a voz mais baixa não sendo mais ouvida.
A mulher de vinte e seis anos aguardou por mais alguns segundos, mas só sobrou o silêncio, e então ela se virou e entrou, esperando que não houvesse mais nenhuma interrupção abrupta.
Claro, as esperanças de Engfa não duraram muito, e ela rapidamente aprendeu que a maioria das noites do apartamento 503 eram agitadas. Algumas vezes, aos fins de semana, haviam conflitos logo ao amanhecer ou ao final da tarde também. Sempre no mesmo padrão. A voz mais grave iniciando e terminando a briga, como se sua palavra fosse a final. Engfa pensou na relação das vozes, e ficou imaginando se era uma mãe rígida e uma filha adolescente ou duas irmãs que não se davam bem.
Ela procurou o síndico do prédio uma vez, quando a briga parecia ter sido particularmente feia, o som de vidro se partindo a deixando apreensiva, mas o síndico não deu muita importância, a dispensando com um aceno de mão e dizendo que não havia nada que pudesse fazer porque somente ela havia reclamado. Engfa tentou argumentar dizendo que só ela havia reclamado porque só haviam três apartamentos ocupados no andar, o dela própria, o sobre qual ela estava reclamando e o de uma senhora meio surda que beirava os setenta anos, mas nada adiantou.
Então Engfa aprendeu a ignorar todo o barulho, colocando músicas no volume mais alto em seus fones de ouvido ou, quando nem isso servia, simplesmente saindo do apartamento e indo correr na área gramada que cercava o estacionamento.
Ela suspirou ruidosamente naquela noite de outono, quando no meio de um trabalho de edição ela percebeu que os moradores do 503 haviam começado a discutir novamente; faziam quatro dias desde a última vez. Ela olhou para o lado de fora pela janela de tamanho médio da sala, observando o tempo lá fora. Parecia estar ventando bastante, e ela sabia que lá embaixo haveriam folhas e mais folhas caídas das árvores que tinham no pequeno bloco de apartamentos.
Deixando o notebook de lado, ela foi até a porta e colocou o tênis de corrida que ficavam na sapateira de duas divisórias, e saiu, pronta para a caminhada não planejada, porém, ela só conseguiu dar dois passos em direção ao elevador, quando um som completamente novo a fez parar.
Não eram as vozes com a qual estava acostumada, nem de louças se estilhaçando no chão, mas sim o choro de uma criança, alto e estridente, como se ela estivesse com dor, como se precisasse ser acalentada.
Engfa se virou, indo em direção ao apartamento vizinho, e embora soubesse que não deveria se intrometer na vida de outras pessoas, ela simplesmente não conseguiu não ir até aquele lamento.
Ela só precisou tocar a campainha duas vezes para ser atendida.
Ao contrário do que Engfa imaginou, não foi nenhuma mulher de meia idade ou uma adolescente que abriu a porta, mas sim uma jovem mulher, o rosto fino, os olhos castanhos escuros e uma das bochechas vermelha, o formato de uma mão ali. A mulher encarou Enfa, piscando os olhos rapidamente, os lábios meio abertos, como se estivesse prestes a falar, mas tivesse se esquecido como.
Engfa engoliu em seco, confusão em sua mente e falou.
"Vocês estão bem?"
Mas antes que pudesse obter qualquer resposta, uma pequena menina de cabelos longos e muito pretos apareceu na soleira, os olhos inchados, ainda chorando, soluçando na verdade, os braços levantados em direção a mulher numa exigência sem palavras. A mulher a pegou, encaixando a menina no quadril com facilidade, uma das mãos em suas costas alisando para cima e para baixo, sussurrando algo que Engfa não compreendeu, mas fez a menina deitar a cabeça em seu ombro, se acalmar e deixar de chorar.
"Vocês estão bem?" Ela repetiu a pergunta.
Sua voz saiu baixa, apreensão fluindo através de sua fala, olhando para as duas figuras ali, sentindo uma súbita necessidade de saber se estava tudo bem, quando é claro, ela sabia que não estava.
A mulher desviou sua atenção da menina em seus braços, e com os olhos marejados acenou com a cabeça, abrindo um leve sorriso.
"Sim, obrigada." Ela colocou uma mão na porta, e Engfa percebeu que ela iria fechar, então ela falou novamente.
"Eu escutei pessoas gritando, e então um choro muito alto. Vim para saber se precisam de ajuda." Ela praticamente atropelou as palavras, seus olhos indo da marca na bochecha da mulher, até a criança agora silenciosa.
A mulher olhou para trás, além da visão de Engfa, para algo, ou mais provavelmente para alguém, e colocou mais esforço no sorriso.
"Agradecemos a preocupação, mas estamos bem e não precisamos de ajuda."
Engfa não acreditou nem por um segundo, e algo a impeliu a continuar falando, querendo saber, precisando saber.
"Mas eu escutei uma discussão e-"
Ela parou de falar quando uma outra mulher apareceu na porta, o rosto irritado. Ela tinha o cabelo curto, loiro e olhos grandes e claros. Engfa teria pensado que era uma estrangeira se ela não tivesse começado a falar num dialeto típico de Bangkok.
"Você não entendeu da primeira vez?" Ela passou um dos braços possessivamente ao redor da cintura da outra mulher, a puxando para ela. "Eu e minha namorada estamos bem. Pare de ser inconveniente."
E com isso, ela fechou a porta, deixando Engfa no corredor, parada e perplexa. Tentando compreender tudo aquilo.
Ela se afastou da porta de número 503 e deu passos até a porta de número 502, pressionou o polegar na fechadura eletrônica e entrou em seu apartamento. Ela até mesmo se esqueceu de tirar o tênis, seguindo até o sofá de dois lugares e desabando ali, tudo fazendo sentido em sua mente.
Ao contrário do que lhe foi falado, nada estava bem.
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Saving us
FanfictionCharlotte é mãe de Malee e vive em um relacionamento abusivo de onde não consegue sair. Engfa cresceu em um lar que não lhe deixou nada além de cicatrizes. O destino das duas está entrelaçado.