A mulher se aproximou rapidamente. Ela estava com uma calça de linho preta, blazer da mesma cor, sapato oxford e uma bolsa lateral.
Engfa sentiu-se enojada. Aquela mulher com a sobrancelha franzida e lábios retos demonstrando insatisfação era a catalisadora de todas as brigas que havia escutado. Também era a responsável pela marca vermelha no rosto de Charlotte.
Charlotte.
Engfa desviou o olhar da mulher recém-chegada e focou na mulher à sua frente.
Esse era seu nome afinal. Ela pensou que era uma pena que não foi a própria mulher que se apresentou. Ainda assim, Engfa sussurrou o nome inaudivelmente, apenas para si mesma.
Nunca havia conhecido ninguém cujo nome era Charlotte antes e ela gostou disso. O nome a lembrou da realeza, era lindo, majestoso, assim como a mulher.
Charlotte teve sua cintura enlaçada, a mulher a puxando para o seu lado possessivamente. O desconforto em seu rosto, a forma como seu sorriso desvaneceu, a tensão em seu corpo; nada disso passou despercebido por Engfa.
A chegada da mulher também teve reações em Malee. A criança soltou o gato - que correu para dentro do apartamento - e estendeu os braços, pedindo que sua mãe a pegasse no colo. Charlotte a pegou, e a criança escondeu o rosto no seu ombro, seu corpo subitamente parecendo pequeno demais.
"O que faz aqui?" A mulher perguntou a Charlotte, mas seu olhar não saiu de Engfa.
Engfa ajeitou a postura, a coluna reta. Embora estivesse com roupas de dormir, sua postura se assemelhava aos modelos que ela fotografava diariamente. Elegante e forte. Ela não deixaria a mulher pensar nem por um instante que intimidava Engfa. Não.
Aquela mulher que deveria sentir-se intimidada por Engfa. Porque Engfa sabia sobre seu comportamento violento. Sabia sobre a gressão física. E sabia que pelo jeito que Charlotte e Malee reagiram a sua presença, que a agressão não havia sido um episódio isolado.
Engfa sentiu uma variedade de sentimentos. Indignação, tristeza, perturbação, mas o que prevaleceu foi o ódio. Como aquela mulher tinha tido a audácia de colocar as mãos em Charlotte? E...
O pensamento que passou por sua mente a deixou desnorteada. Será que Malee também havia sido agredida? Ela era só uma criança.
Ela viu vermelho, e sua audição ficou estática, nada além de ruídos que ela não conseguia compreender. Memórias que ela havia enterrado tão cuidadosa e profundamente foram soltas de repente e as cenas começaram a passar diante de seus olhos.
Seu pai e sua mãe gritando um com o outro. Seu pai levantando a mão para sua mãe repetidamente. Ela tentando intervir e sendo machucada também. A rotina previsível e exaustiva de esconder as feridas para que perguntas não fossem feitas. Porque quando as perguntas eram feitas, não havia como não dizer a verdade. Só que mesmo que a verdade fosse dita, nada nunca mudou.
"Eu-" A voz de Charlotte, agora baixa, quase um sussurro, a forçou a deixar as lembranças de lado.
Charlotte olhava para o chão, o aperto em Malee forte. "Eu vim agradecer a vizinha por ontem."
"Ah, por ontem..." A mulher acenou com a cabeça e se dirigiu a Engfa "Obrigada por ontem. Charlotte não sabe cuidar da própria filha às vezes." A mulher riu, seus olhos frios, insultando a mulher alegremente e sem qualquer vergonha.
Charlotte abaixou a cabeça, constrangida.
Engfa sentiu fúria e o mundo ficou vermelho novamente por alguns instantes. Como aquela mulher ousava falar daquele jeito. Quando tudo que Engfa via sobre Charlotte e Malee era o quão diligentemente a mulher cuidava da criança. Como aquela mulher ousava rir, quando machucava Charlotte, e possivelmente Malee, sabe se lá há quanto tempo.
Engfa cerrou os punhos, e a caixa de cookies foi esmagada em suas mãos. Ela sentiu a violência a tentando, a vontade de confrontar aquela mulher, não só verbal, mas também fisicamente se construindo em seu ser como pequenas peças de Lego. Ela nunca havia se sentido desse jeito com ninguém, nunca havia odiado nenhuma pessoa sem os conhecer, nunca havia sentido tanta vontade de machucar outro ser, mas ali, naquele momento, ela decidiu que a mulher à sua frente seria uma exceção.
Sem realmente pensar, ela deu um passo para frente. Ela era mais alta que a mulher por poucos centímetros. Ela provocaria dor naquela mulher, a faria engolir suas palavras detestáveis, a faria saber o que é ser machucada.
Foi quando Charlotte levantou a cabeça e falou novamente, sua voz tingida de receio. "Vamos, Heidi, vamos para casa, preciso conversar com você sobre algo." Charlotte sustentou Malee com uma só mão, a outra segurou o braço de sua namorada, Heidi, a puxando.
Engfa a olhou, e um segundo foi o suficiente para ela entender o que Charlotte estava tentando fazer, o que Charlotte queria a dizer.
Charlotte mexeu a cabeça, quase imperceptivelmente, os olhos vulneráveis, mas determinados. Ela estava pedindo, implorando, para Engfa não se envolver.
Engfa sentiu a frustração tomar conta de seu corpo, a impotência diante da situação a enredando. Ela sabia do que se tratava aquele olhar, sabia o que a ajuda de outras pessoas significava, sabia que as consequências eram muito piores. Sabia, acima de tudo, que não podia prejudicar Charlotte e Malee. Ela recuou, e não perdeu o olhar de desprezo de Heidi.
"Obrigada, vizinha." Heidi permaneceu com o sorriso no rosto, arrogante.
"Engfa."
"O quê?" Heidi pareceu confusa por um momento.
"Engfa Waraha, esse é o meu nome."
Heidi retorceu os lábios, não gostando do tom frio de Engfa. "Não costumo ligar para o nome de pessoas que não são importantes para mim, sabe?" Ela disse, desdém em sua voz. "Pessoas que não fazem a diferença na minha vida."
"O meu você deve saber." Engfa afirmou.
A mulher soltou a cintura de Charlotte, e se aproximou de Engfa, que permaneceu firme. "Há algum motivo para isso?"
Engfa a encarou sem vacilar. "É só um palpite." Ela deu de ombros e levantou o canto do lábio, um sorriso gélido. "Engfa Waraha. Não esqueça."
A tensão no ar era como um vendaval que anuncia uma tempestade. Charlotte puxou o braço de Heidi mais uma vez. "Vamos, Heidi, por favor."
Heidi cedeu, e com mais um olhar depreciativo para Engfa, seguiu Charlotte.
A porta do apartamento 503 fez um barulho alto quando foi fechada. Engfa permaneceu ali, tentando controlar a si mesma, seus pensamentos, sua respiração, sua vontade de andar até o apartamento e ferir Heidi.
Ela apurou a audição, decidida que se ouvisse algo suspeito, todo o bom senso seria esquecido. Mas não houve nada. Nem uma voz mais alta ou barulho estranho.
E ela sabia no fundo de seu ser que aquilo, aquele silêncio, era muito pior.

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Saving us
Hayran KurguCharlotte é mãe de Malee e vive em um relacionamento abusivo de onde não consegue sair. Engfa cresceu em um lar que não lhe deixou nada além de cicatrizes. O destino das duas está entrelaçado.