Família

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Dizer que Engfa ficou perplexa seria um eufemismo. Ela ficou verdadeiramente perturbada. 

Naquela noite, ela não conseguiu dormir, e deitada na cama, ficou pensando em todas as discussões que ouvira naquele pouco tempo que morava ali, repassando o rosto marcado da jovem mulher, a criança chorosa e a mulher loira. 

Sua mente indo e voltando do passado, uma aflição em seu coração. 

Eram uma família, afinal. Parecida com a sua.

Quando o sol surgiu, fraco e quase esmaecido por entre as nuvens densas, ela levantou - não havia de fato, conseguido dormir - fez toda a sua rotina matinal e saiu do apartamento, sua mochila nas costas, câmera no pescoço - a mesma câmera que quase foi quebrada quando ela se assustou na primeira briga que ouviu - e ficou parada na frente da sua porta. 

Era muito cedo, e embora ela não soubesse da rotina da família ao lado, ela esperou ouvir algum som vindo da porta com o número 503. Qualquer coisa que indicasse que estava tudo bem. Ela não sabe quanto tempo ficou ali, em pé, o rosto das duas mulheres e da criança em flashes em sua mente, mas quando seu celular vibrou em seu bolso, uma mensagem de Aoom perguntando onde ela estava, Engfa percebeu que deveria ir embora. 

Durante o curto trajeto de carro, ela colocou música alta, tentando fazer com que as letras penetrassem em sua mente e fazer com que ela esquecesse sobre o apartamento ao lado do dela, mas de nada adiantou, e ela só ficou mais mal-humorada e com dor de cabeça. 

Engfa não conseguia disfarçar insatisfação, e assim que chegou ao estúdio fechado - era uma campanha de maquiagem - a primeira coisa que Aoom fez foi perguntar. 

"O que há de errado, Eng? Você não costuma ser tão mal educada." 

Engfa olhou rapidamente para a amiga, percebendo que havia entrado no local sem cumprimentar ninguém, imediatamente indo até a mesa disposta ali e acomodando sua máquina e os apetrechos. 

Ela se esforçou, e colocando um meio sorriso no rosto, juntou as mãos e cumprimentou os presentes ali. "Bom dia, pessoal." 

Virando-se para Aoom, ela cumprimentou. "Bom dia, Aoom." 

Todos a cumprimentaram, e elas iniciaram a sessão de fotografia. 

Assim que finalizaram, Engfa não se opôs a amiga a arrastando para a primeira cafeteria que encontrou e a mandou falar. 

Engfa nunca havia sido do tipo afetuosa. Como uma pessoa introvertida, ela ficava quieta em seu canto, nunca realmente começando nenhuma conversa, e claro, muito menos toques, mas depois de quatro anos inteiros sendo colega de quarto de Aoom, as coisas haviam mudado.

A amizade e a cumplicidade que existiam agora entre elas não havia sido de maneira nenhuma forjada desde o início, quando elas caíram em um golpe no apartamento alugado perto do campus e tiveram que ali residir por todo o período acadêmico.

Engfa passou dias procurando um local ideal para morar - ideal sendo perto do campus e barato o suficiente para ela conseguir pagar - e quando encontrou o pequeno apartamento num pequeno prédio que parecia acolhedor o suficiente para ela passar seus anos de faculdade, ela se decidiu. O depósito do ano inteiro foi feito, e quando ela chegou, ficou abismada ao perceber que já havia uma estudante instalada ali. 

Foi uma total confusão, Aoom com seu nervosismo escancarado e Engfa com sua raiva latente, as duas num embate que logo entenderam que não haveria vencedores. Era uma prática comum, foi o que o policial disse à elas - quando toda a altercação incomodou os vizinhos - o locador alugava o local para duas pessoas diferentes - uma por meios legais, e a outra não - pegava todo o dinheiro e depois agia como se nada de errado tivesse acontecido, apresentando os documentos de somente uma locação. 

A locadora oficial era Engfa Waraha, e a vítima era a estudante que havia visto o anúncio do aluguel em um site que nem existia mais, e pagou por um semestre inteiro com dinheiro vivo. Engfa Waraha ficaria, suas caixas poderiam finalmente sair da recepção e ela poderia se ajustar. Thaweeporn Phingchamrat deveria ir embora, juntar suas poucas coisas recém organizadas e procurar um outro local. Tudo deveria ser feito até seis horas da noite, foi a decisão do policial. 

Engfa ficou aliviada, ela havia trabalhado duro para conseguir aquele dinheiro, mas esse sentimento se dissipou como névoa quando viu a menina colocando suas roupas em uma mala gigante enquanto chorava, lamentando para si mesma baixinho. Engfa não era uma pessoa ruim. Então quando ela disse que a menina poderia ficar até que ela encontrasse uma solução, e a menina a abraçou e chorou ainda mais, o laço havia sido estabelecido (embora não soubessem na época).

Não foi fácil, claro, nenhuma das duas estava procurando por uma colega de quarto - muito menos de cama, pois só havia uma e nenhuma delas quis dormir no chão -, e elas mal conseguiam se decidir como tudo deveria funcionar, mas em pouco tempo, o relacionamento progrediu (elas eram da mesma universidade, mesmo curso), e quando Aoom tinha dinheiro o suficiente para encontrar um local para si própria, no final do primeiro semestre, Engfa praticamente implorou para ela ficar, sua afeição forte demais.

"Estou esperando, Engfa" 

A mais velha foi tirada de seus devaneios e encarou sua amiga, seu coração agradecido porque anos atrás as duas se encontraram.

Engfa contou tudo, e o choque, descrença e pena no rosto de Aoom foi evidente ao saber que as brigas que Engfa havia comentado eram bem mais sérias do que esperava. 

"Eu não sei o que fazer, Aoom" Engfa admitiu, girando o canudo no café já frio e não bebido dentro do copo. Era isso que estava a perturbando, a urgência de querer fazer algo, e o sentimento de impotência. 

"Vamos à delegacia, vamos denunciar." A voz de Aoom tinha subido uma ou duas oitavas. Ela rapidamente começou a recolher suas coisas, determinação por todo o rosto. 

"Não é tão fácil assim, Aoom"

E havia tanta honestidade em sua voz, que os olhos de Aoom simpatizaram e ela estendeu as duas mãos, oferecendo à amiga que logo segurou.

Claro que Aoom sabia sobre a família de Engfa, sobre o lar do qual ela havia fugido assim que teve a chance, sobre todo o caos e as idas à delegacia de polícia que nunca adiantaram. Claro que Aoom sabia sobre todo o trauma. Ela era a única. 

"Vamos pensar numa solução juntas, tá?" Ela ofereceu, um sorriso gentil no rosto. 

Engfa acenou.

"Tudo vai ficar bem" 

Engfa era grata por ter Aoom como sua amiga.

Saving usOnde histórias criam vida. Descubra agora