Charlotte encarava a tela de plasma sem realmente prestar atenção, todo seu foco na mão de Engfa em sua cintura, a segurando perto. O toque de Engfa era delicado, quase tímido, mas com uma leve pressão que fazia Charlotte se sentir estranhamente segura, como se Engfa estivesse dizendo que estava ali, mesmo sem realmente falar nada.
Normalmente, Charlotte nunca permitiria ser tocada assim, mas com Engfa... simplesmente era diferente.A princípio ela não havia gostado de Engfa, a forma inesperada como a mulher apareceu em sua porta e perguntou se precisavam de ajuda a fazendo se sentir humilhada por ser pega naquela situação; quando Engfa as seguiu até o playground, Charlotte pensou nela como uma ameaça, e por fim, quando ela encontrou Engfa no mercado com Malee, ela havia realmente ficado apavorada, pensando que Engfa poderia estar as perseguindo com algum propósito maldoso.
Charlotte não costumava pensar mal das pessoas sem as conhecer, ela sempre havia sido do tipo que deixa o tempo dizer quem era quem e suas verdadeiras intenções, e mesmo quando se revelavam ruins, ela ainda pensava que as pessoas poderiam mudar, sempre acreditando no melhor. Isso até que sua mãe a expulsou de casa quando ela completou a maioridade, seu namorado a abandonou quando descobriu que ela estava grávida e Heidi a quebrou continuamente.
Charlotte aprendeu que as pessoas até poderiam mudar, mas elas simplesmente não queriam.
A vida não era colorida, afinal. Era cinza.
A maioria dos dias de Charlotte eram assim, como se um filtro cinza tivesse sido colocado em sua visão, como se o tempo fosse perpetuamente nublado, nuvens obscurecendo sua visão do sol de uma forma que ela raramente conseguia sentir seu calor. Ela tinha Malee, no entanto. Era sua filha que a fazia ter vislumbres das cores nos dias mais escuros, era aquela pequena garotinha tão linda que a fazia continuar, por mais difícil que parecesse ser.
Claro, Charlotte sabia que deveria procurar ajuda profissional quando as coisas ficavam muito feias, e foi o que ela fez. Apenas para Heidi descobrir e sua tentativa de melhorar foi coibida, a mulher jogando seu remédios fora e a proibindo de continuar seu tratamento. Heidi também a agrediu naquele dia, e Charlotte nunca poderia esquecer o que ela disse. 'Você é algum tipo de retardada para precisar desses remédios? Eu não namoro com uma pessoa louca. O que você precisa é de uma surra.' E foi o que Heidi fez, sempre fiel às suas palavras. Charlotte precisou usar blusas de manga longa por mais de uma semana, seus braços uma mistura das cores vermelha, roxa e azul.
Charlotte não era louca ou retardada, ela só... queria se sentir melhor e mais feliz.
Ela olhou de relance para o lado, onde Malee estava sentada preguiçosamente no colo de Engfa. A menina parecia mais relaxada do que Charlotte havia visto em algum tempo. Charlotte se surpreendia a cada dia com a confiança que Malee tinha em Engfa, a forma como a menina que era sempre tímida e calada com estranhos agia perto da mulher mais velha, como se conhecesse Engfa desde sempre. De certa forma, Malee foi a razão para elas estarem ali naquela situação. Se não fosse a menina explicando pacientemente que Engfa ia a levar de volta para Charlotte no dia em que foi para a loja de conveniência sozinha, Charlotte não se sentiria culpada por agir de forma ríspida e não faria os cookies como uma forma de pedir desculpas.
Naquela manhã, tudo pareceu mudar. Aquela mulher que era apenas um incômodo para Charlotte a olhou de um jeito que Charlotte não conseguiu explicar, mas que foi impossível de ignorar. Quando Engfa sorriu, Charlotte percebeu que a mulher tinha covinhas, e foi como se uma janela fosse aberta em um ambiente muito escuro, sua claridade iluminando todo o cômodo, até as partes mais escondidas onde nunca a luz havia chegado antes.
Mas o que realmente a fez ter uma visão diferente da mulher foi quando Heidi apareceu, com suas palavras duras e desdenhosas. Honestamente, Charlotte já estava acostumada, e ela até preferia que Heidi só usasse palavras. Porém, quando ela olhou de relance para sua vizinha, até então sem nome, ela sentiu seu coração pular uma ou duas batidas. Naqueles olhos castanhos havia nada além de raiva, feroz e selvagem, mas Charlotte não sentiu medo, porque o olhar estava direcionado para Heidi, como se a mulher estivesse pronta para atacar. E Charlotte achava que isso é o que teria acontecido se ela não tivesse implorado silenciosamente para que a mulher não fizesse nada. Naquele dia, Charlotte descobriu o nome da sua vizinha, e embora a mulher tenha dito para Heidi não esquecer aquele nome, foi Charlotte quem não esqueceu, repetindo mentalmente durante todo o dia e a noite também.
Engfa Waraha.
Engfa Waraha era diferente de qualquer pessoa que Charlotte já havia conhecido. Engfa ficava. Mesmo que Charlotte tivesse agido com rispidez e arrogância, Engfa aceitou suas desculpas e ficou. Ela ficou no hospital também, cuidando dela e de Malee de forma tão gentil que Charlotte sentiu vontade de chorar quando se despediu na porta. E no dia seguinte, quando Engfa a consolou, com seu abraço, as palmas da mão quente em seu rosto e aquelas palavras, Charlotte sentiu seu coração encher do que ela sabia que não era só gratidão. Era mais profundo, mais intenso, mais aterrador, mas que ela não sabia especificar.
Charlotte focou o olhar no perfil de Engfa, na forma como sua mandíbula era definida e seu nariz tinha o formato perfeito, como seus lábios eram cheios e pareciam perfeitos quando ela sorria. Era como olhar para uma obra de arte que o pintor havia treinado a vida inteira para criar, uma autêntica obra-prima. Engfa Waraha era a mulher mais linda que Charlotte já havia colocado os olhos, e quando soube que a mulher era fotógrafa, ela sentiu que o lugar da mulher era na frente das lentes, e não atrás. A beleza de Engfa precisava ser apreciada. Também havia algo que ia além do físico. Engfa era bondosa, cuidadosa e carinhosa. Charlotte havia visto e experimentado.
No entanto, o que mais intrigava Charlotte era aquela sensação estranha, quase inquietante de familiaridade. Como se conhecesse Engfa de algum lugar, como se seus caminhos tivessem se cruzado antes em algum momento. E aquilo tanto a atraía quanto a confundia, porque ela sabia que não havia maneira de já ter visto Engfa e não lembrar dela, não quando a mulher era tão linda. Charlotte teve aquela mesma sensação quando escutou a voz de Engfa pela primeira vez, como se uma melodia esquecida estivesse tocando no fundo da sua mente, baixa e suave, mas certamente inconfundível.
Era assustador, mas também reconfortante. E por mais que Charlotte não acreditasse em vidas passadas, ela não conseguiu evitar pensar que se acreditasse, Engfa havia sido uma parte vital de sua existência anterior.
E então, assim como no dia que ela levou cookies para Engfa, tudo pareceu mudar novamente de repente. Engfa riu de algo no filme, o som reverberando pela sala, Malee, em seu colo, a acompanhou e se aconchegou ainda mais, abraçando a mulher ainda mais forte como se aquele fosse o lugar mais seguro do mundo. Engfa, distraída, apertou suavemente a cintura de Charlotte e então se virou para ela, como se para verificar se a mulher ia rir também, seus olhos castanhos iluminados pela televisão, tranquilos, mas arrebatadores.
Não era só gratidão. Como poderia ser?
Ela pensou que os seus sentimentos por Engfa se comparavam com um mar ondulante mas sereno, a mais velha entrando em sua vida de forma a preencher lugares antes vazios, mas ali, naquele momento, não mais. A maré tranquila se dispersou e uma onda avassaladora a atingiu, a submergindo. Como um tsunami gerado por abalos sísmicos que ela nem sabia da existência, mas que uma vez formado, não podia mais ser contido.
Charlotte havia se apaixonado por Engfa. Verdadeira e profundamente. Engfa Waraha era tudo que Charlotte Austin queria, que sabia que não podia ter, mas ainda assim, como uma criança teimosa, desejava desesperadamente.
Charlotte não sabia se Engfa gostava dela, não sabia se os gestos de cuidado da mulher eram apenas uma expressão de quão pura e boa ela era, mas quando sua mão se levantou e ela tocou o rosto de Engfa de forma gentil e a mulher mais velha parou de sorrir, seus olhos ficando intensos, Charlotte simplesmente decidiu acreditar.
Ela tirou suas mãos do rosto de Engfa e desviou o olhar, mas apoiou a cabeça em seu ombro. Sentimentos conflitantes encheram sua mente enquanto ela pensava que se Engfa retribuísse seus sentimentos, ainda assim, nada seria fácil. Porque havia Heidi, e a mulher fazia parte da vida de Charlotte fazia tanto tempo que ela não se via sem Heidi, porque ela sabia que Heidi nunca a deixaria ir.
Engfa se inclinou, e Charlotte sentiu seu coração explodir quando os lábios macios da mulher encostaram em sua bochecha, um beijo leve mas cheio de significados depositado ali.
Foi quando ela decidiu. Por mais que parecesse impossível, Charlotte tentaria.
Porque ela amava Engfa Waraha. E queria que Engfa Waraha a amasse também.
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Saving us
FanfictionCharlotte é mãe de Malee e vive em um relacionamento abusivo de onde não consegue sair. Engfa cresceu em um lar que não lhe deixou nada além de cicatrizes. O destino das duas está entrelaçado.